CRÍTICA | ‘Galeria F’ é um retrato cinematográfico sobre a ditadura militar e a memória histórica do Brasil

Bianca Moreira

Mais do que um recorte contra a realidade desumana e degradante dos episódios de tortura, “Galeria F” propõe um percurso de reflexão para superar a escuridão da ignorância que permearam os anos da ditadura militar brasileira, na qual por mais de duas décadas vivemos uma situação de cegueira coletiva e aprendemos a sobreviver aos mecanismos de tortura.

Através da reconstrução de parte da trajetória inicial da fuga de Theodomiro Romeiro dos Santos, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e o único preso politico da história republicana do Brasil condenado à morte, o longa propõe um olhar que vai além da tragédia dos “anos de chumbo”.

É ao lado de seu filho mais velho que Theodomiro percorre os locais por onde foi encarcerado e alguns dos seus primeiros trajetos e refúgios durante sua fuga. Passam pelo Cemitério Campo Limpo em Ilhéus, pela fazenda Boa Esperança em Canavieiros, pela fazendo Olhos d’água em Itabebi, por Vitória da Conquista e pelo centro de tortura Forte do Barbalho em Salvador, percorrendo um total de 1277 quilômetros. Durante o percurso, Theo narra sua própria história através de conversas com seu filho e do reencontro com antigos colegas com quem esteve preso e com os que o auxiliaram na fuga.

A leveza e a naturalidade com que são feitos os relatos, o tom melancólico que percorrem as lembranças de Theodomiro e de seus colegas de luta durante os diálogos, são o contraponto à  atmosfera de repressão que penetra a maior parte da memória sobre o assunto no país.

O documentário está longe de se encaixar no padrão clássico de narrativa. Emília Silveira, diretora do filme, abandonou a estrutura clássica e enxuta que utilizou em “Setenta”, longa-metragem que aborda o ápice da ditadura militar através de relatos de dezoito vítimas do regime, para apostar em um enquadramento inovador. Os “personagens” dessa trama são apresentados pelo primeiro nome ou apenas por um apelido como é o caso de Theodomiro, que é exposto como Theo e seu filho que é referido como Guga.

O enredo não é linear, não segue uma ordem cronológica concreta, de modo que o telespectador é introduzido aos poucos na história. As primeiras cenas do filme são compostas por uma reunião em família onde todos se sentam juntos em uma mesa para contemplar álbuns de fotos e por meio de algumas frases que vão sendo soltas durante esse episódio é que começamos a ter uma ideia sobre o que se trata o filme.

O longa possui duas linhas explanatórias: “A fuga” e a “A prisão”, que, a princípio,  não possuem uma divisão muito clara. A primeira diz respeito ano de 1979 quando Theo consegue fugir do presídio Lemos de Brito e a segunda se refere aos acontecimentos que tiveram início no dia 27 de outubro de 1970, ocasião onde Theodomiro foi preso e torturado e que deu início a uma longa trajetória de sua vida dentro dos cárceres.

O recorte fotográfico é outro aspecto interessante do filme. Durante as viagens, a câmera se encontra muitas vezes no banco de trás do automóvel, de forma que o telespectador possui a visão de um passageiro além de realçar a imagem das estradas percorridas.

Os primeiros anos da prisão de Theodomiro são narrados nos últimos minutos e aos poucos o tom bem humorado e ameno que relatam sua fuga vai dando lugar a uma fala marcada pela angústia e a momentos de silêncio. A cena de maior impacto se passa no prédio desativado da antiga Galeria F, com suas celas vazias e cheias de histórias, contadas em rabiscos de paredes, na Penitenciária Lemos de Brito. A entrada de Theo após 40 anos na cela onde permaneceu por anos retrata essa aflição. Inquieto, andava de um lado para o outro e após permanecer minutos sem falar uma palavra disse uma frase que pode ser a metáfora do que foi a ditatura para ele e para muitas outras pessoas: “É por isso que quando você vê no zoológico o bicho na jaula de um lado pro outro, de um lado pro outro, você entende o porquê dele estar fazendo isso, porque as pessoas também fazem”.

Emília Silveira recupera em “Galeria F” parte da memória da História recente que nem sempre é abordada nas escolas e nas demais instituições da nossa sociedade, de maneira pouco óbvia e sob um panorama sereno. Ganha ainda mais valor na atual crise politica vivida pelo país, no qual há graves ameaças a democracia. Galeria F” é um alerta para que os fantasmas do passado não volte a nos assombrar.

Bianca Moreira

Estudante de jornalismo. Apaixonada por literatura,teatro, fotografia e especialmente pela sétima arte.
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