CRÍTICA | ‘O Fantasma da Sicília’ fantasia o sofrimento que sicilianos passaram nas mãos da máfia

Bruno Giacobbo

O primeiro longa-metragem da dupla de diretores e roteiristas Fábio Grassadonia e Antônio Piazza, “Salvo: Uma História de Amor e Máfia” (2013), foi um enorme sucesso, acumulando indicações e prêmios mundo afora, ao longo de seu périplo por festivais internacionais. O plot, o florescer de uma paixão abrasada pelo clima quente do sul da Itália, em uma trama propositalmente arrastada, causou estranheza para quem esperava mais máfia e menos amor. Em seu segundo filme, a dupla decidiu continuar explorando o terreno que lhes é familiar, só que o súbito romance entre um assassino profissional da Cosa Nostra e uma mulher cega, deu lugar a um namorico entres dois jovens de tenra idade e nenhuma experiência. Giuseppe (Gaetano Fernandez) e Luna (Júlia Jedikowska) são colegas de escola e moram em um vilarejo à beira-mar, na Sicília. Juntos, estão descobrindo as coisas do coração. A mãe dela (Sabine Timoteo) não gosta dele. Aparentemente, o motivo é a diferença social. A família do menino tem dinheiro, um haras e uma casa chique. Já eles, ainda que possuam uma sauna, vivem em um casebre encarrapitado na encosta de um monte, ao lado de tantas outras residências iguais. Uma implicância mundana fadada ao esquecimento.

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Esquecimento é a palavra chave de O Fantasma da Sicília (Sicilian Ghost Story), uma produção trinacional (Itália, França e Suíça), baseada em uma dolorosa história real. Um dia, como em um passe de mágica, Giuseppe desaparece. Desesperada, Luna começa a procurá-lo em todos os cantos. Na floresta, onde se escondiam do mundo, e em casa, mas ninguém lhe dá atenção. Nem os familiares dele. A mãe enlutada, toda vestida de preto, só sabe chorar. Apesar disto, ele não está morto. Ao menos, não oficialmente. Na escola, a professora diz que o jovem ficará ausente por 17 dias. E assim, calmamente, o tempo passa, a rotina do vilarejo volta ao normal e o garoto é esquecido como se nunca tivesse existido. No entanto, ela não entende o porquê de as pessoas estarem agindo desta forma. Inconformada, toma para si a função de guardiã da memória do namorado e a missão de tentar encontrá-lo custe o que custar, mesmo que sua mãe proteste veementemente, que seu pai (Vicenzo Amato) se omita diante da insensibilidade da esposa ou que a polícia continue a ignorar. E nesta luta, seu suporte é a melhor amiga Loredana (Corinne Musaralli), uma garota grandalhona e decidida. A única capaz de entendê-la.

Para contar a história deste desaparecimento e consequente esquecimento, Grassadonia e Piazza conferiram um tom absolutamente lúdico à trama. De novo: quem for aos cinemas esperando mais realismo e menos fantasia, corre o risco de se decepcionar. Até aqui, a dupla de realizadores ambientou todos os seus filmes na Sicília e quando se fala da ilha italiana é quase impossível não se falar da máfia. Só que a realidade já é dura demais e existem muitas maneiras de colocar o dedo na ferida. Transformar um fato real em fábula, falando por meio de signos, é um deles. Do seu sumiço em diante, Giuseppe se transforma em uma figura fantasmagórica. Ninguém o vê, as pessoas fazem de conta que ele nunca existiu, mas o siciliano está ali, assombrando a todos. O ludismo e o tom ‘fabulesco’ da obra se materializam, também, na maneira como Luna obtém a maior parte das pistas que podem levá-la a encontrar o namorado: através de sonhos e devaneios, dormindo ou acordada. Em parte, é por não conseguir explicar de onde vem estes insights, que ela não é levada a sério pelos adultos. A outra parte deriva dos fatos reais, pois se não pauta o jeito como a história é contada, em momento algum a realidade é deixada de lado ou esquecida.

Se “Salvo” pode ser classificado como um neo-gângster com pitadas de fantasia, O Fantasma da Sicília abraça com vontade o que podemos chamar de realismo-fantástico, entre os tantos subgêneros que povoam a cinematografia moderna. E se “O Labirinto do Fauno” (2006) usou da fantasia para aludir a dura realidade da Guerra Civil Espanhola, aqui, a mesma é utilizada para falar do sofrimento que tantos sicilianos passaram nas mãos dos mafiosos. As câmeras são incisivas, captando os olhares das pessoas, dos animais ou mesmo a beleza de uma terra secular que não se curva frente anos de injustiça. Roberto Saviano, o grande escritor italiano, traduziu com palavras a revolta dos homens de bem e, hoje, vive escondido. Com a luxuosa parceria do fotógrafo Luca Bigazzi, Fábio Grassadonia e Antônio Piazza traduziram tal sentimento com imagens. Por sinal, tão deslumbrantes quanto quaisquer outras já produzidas por nomes como Vittorio Storaro, Pasqualino De Santis ou Giuseppe Rotunno. Que a sorte sorria para eles, uma vez que, no filme, ao final de tudo, é possível esboçar um leve sorriso.

Desliguem os celulares e excelente diversão.

::: TRAILER

::: FOTOS

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Sicilian Ghost Story
Direção: Antonio Piazza, Fabio Grassadonia
Elenco: Julia Jedlikowska, Gaetano Fernandez, Corinne Musallari, Andrea Falzone, Federico Finocchiaro, Lorenzo Curcio, Vincenzo Amato, Sabine Timoteo, Filippo Luna, Baldassare Tre Re, Rosario Terranova, Gabriele Falsetta, Vincenzo Crivello, Corrado Santoro
País: França, Itália, Suíça
Estreia: 28/09/2017
Classificação: 14 anos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN