CRÍTICA | ‘Rafiki’ é um colorido libelo de esperança
Bruno Giacobbo
O capim do vizinho sempre é mais verde. Vocês já ouviram esta frase, não? Ela faz referência àquela sensação de que nunca estamos satisfeitos com o que temos e de acharmos que a vida dos outros é melhor do que a nossa. Em momentos como este, talvez seja legal pensar que existe o contrário: se não temos o que queremos, há aqueles que possuem menos ainda. Com o resultado da última eleição, muitas pessoas passaram a acreditar que o Brasil, tomado por uma onda conservadora, enfrentará uma fase de retrocesso em relação a direitos adquiridos. Apesar de eu não crer na perda de tais conquistas, a verdade é que só o tempo dirá quem tem razão. Por agora, prefiro pensar que, de uma maneira geral, somos uma sociedade mais desenvolvida e que existem lugares mais atrasados como, por exemplo, o Quênia.
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Por que todo este preâmbulo e a citação específica ao Quênia, é o que vocês devem estar se perguntando. Simples: porque é deste distante país africano, mais conhecido por seus atletas, que vem um dos melhores filmes dos últimos tempos: Amiga (Rafiki), do cineasta Wanuri Kahiu. Sua trama tem muito a ver com a imagem que os pessimistas projetam para o futuro brasileiro. Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva) são filhas de dois políticos inimigos, que disputam um cargo no próximo pleito. Elas se conhecem nas ruas da vizinhança onde moram, depois que a amiga de uma delas rasga o cartaz do pai da outra. O que poderia descambar para uma briga, se torna uma bela história de amor quando fica claro que os olhares trocados são de admiração e contemplação. Só que a felicidade, muitas vezes, é passageira.
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O filme, baseado em um conto da escritora Monica Arac de Nyeko, é bastante eficaz ao retratar a sociedade e o local onde as meninas vivem com extremamente machistas. Pautados por princípios religiosos, os costumes são rígidos e as pessoas são ‘cegas’ para aquilo que é diferente. Quando escrevo que elas não enxergam, é quase que literalmente, pois, tirando as fofoqueiras Mama Atim (Muthoni Gathecha) e Nduta (Nice Githinji), todos demoram a perceber o que está acontecendo entre as protagonistas. No entanto, quando a vizinhança cai na real, as coisas mudam de figura e esta história se transforma em uma versão moderna de “Romeu e Julieta”, onde os Capuletos e os Montecchios dão lugar aos Mwauras e aos Okemis, com uma rivalidade pintada em muitos tons de rosa e azul.
Rosa e azul são as cores das contas que enfeitam os dreads da personagem Ziki, sempre atenta a sua feminilidade. E são com tons e variedades destas cores que o cineasta queniano Wanuri Kahiu retratou toda a fase da descoberta do amor, da paixão e da concretização de sentimentos. O prédio de uma delas é rosa por fora. O céu no pôr do sol também. O azul aparece em outros lugares. Por vezes, há o verde, nas roupas do pai de Kena ou na iluminação de uma rave onde o casal vai, o amarelo, o vermelho e o laranja também estão lá. A vida é colorida até que acontece alguma coisa de errado. E quando ocorre tal coisa, o filme muda bastante. O diretor investe em uma composição de cores mais sóbria e em uma ambientação soturna, até que haja espaço para um novo desabrochar de vida e de sentimentos.
Apesar da comparação que fiz com o drama de William Shakespeare, esta não é uma história trágica. Muito pelo contrário, Amiga é um libelo de esperança calcado nas carismáticas atuações de Samantha Mugatsia e Sheila Munyiva. Suas cenas são lindas, elas possuem uma química única e carregariam, tranquilamente, o longa-metragem nas costas se nada mais desse certo, o que, claro, como vocês já puderam ver, não é o caso. E ainda falando com vocês que chegaram até aqui, como não sou naif (só para repetir a fala de uma personagem) sei que existe no Brasil, principalmente em seus rincões e no interior, gente que pensa e age da mesma forma que a machista vizinhança de Kena e Ziki. Só que, assim como o filme, eu prefiro ter durante a maior parte do tempo uma visão colorida e esperançosa.
Desliguem os celulares e excepcional diversão.