BAÚ DO BLAH! | ‘A Fonte da Donzela’ (1960)

Bruno Giacobbo

Para duvidarmos de alguma coisa, via de regra, em algum momento, precisamos ter acreditado nela. Criado em um lar ultra religioso, com um pai pastor luterano que castigava seus três filhos, Ingmar, Margareta e Dag, por qualquer coisa que considerava pecado, o cineasta sueco Ingmar Bergman transformou, como pouquíssimos fizeram, a religião, a fé e Deus em personagens recorrentes de suas produções. Películas diversas como “O Sétimo Selo” (1956), “O Olho do Diabo” (1960) e “A Luz do Inverno” (1962), de uma forma ou de outra, abordam questões religiosas. No entanto, é no longa A Fonte da Donzela (1960), obra vencedora do Oscar e do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, que ele faz a pergunta que a maioria das pessoas faz quando passa por um problema de grande dificuldade: “Onde está Deus quando mais precisamos dele?”. E é a ausência de uma resposta simples e objetiva que nos leva a duvidar daquilo que antes tínhamos certeza.

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Nesta história, Herr Töre (Max von Sydow) e Märeta Töre (Birgitta Valberg) formam um casal bastante religioso que vive segundo os preceitos de sua crença, em pleno Século XIV. Juntos com a filha Karin (Birgitta Petersen), uma bela e espevitada adolescente de apenas 15 anos, e alguns empregados, eles vivem em uma propriedade rural. Um dia, ela é praticamente obrigada pelos pais a levar até a igreja mais próxima velas para Nossa Senhora. Acontece que próximo, aqui, é eufemismo. O trajeto leva praticamente um dia inteiro e sua única companhia é a filha dos criados, Ingeri (Gunnel Lindblom), também jovem, um pouco mais velha, grávida e pagã – em uma cena logo no início, ela aparece clamando por Thor (sim, o próprio, o Deus do Trovão da mitologia nórdica). Desprotegidas, as garotas encontram pelo caminho três pastores de cabra. O resultado não poderia ser pior: Karin é violentamente atacada, estuprada e morta.

Em eras medievais a notícia demorava a correr. Herr e Märeta passam muitos dias sem nenhum sinal da filha. A dor é latente, mas eles entregam na mão de Deus. Deus proverá e enquanto não provê, eles cuidam de rotina da fazenda e seguem sendo bons cristãos. A prova disto é que, num golpe do destino, numa noite gélida, na qual seria impossível sobreviver ao relento, recebem a visita dos pastores que tiraram a vida de Karin. Herr os recebe, os coloca para dentro de casa, diz que vai lhes arranjar um trabalho temporário e os faz jantar com os seus. Um dos convidados, um menino mais novo que sua filha, está doente. Tem febre. Bate o queixo. E até isto não passa despercebido. A empregada, Frida (Gudrun Brost), coloca a mão em sua testa, cuida dele, o cobre com uma manta, dedica uma atenção compatível a que dedicaria a Ingeri ou ao herdeiro desta que está por vir. Neste momento, a pergunta que passa pela cabeça de quem está vendo o filme é: “E quando a verdade vier à tona?”.

Para além da questão da ausência de Deus, manifestada com um silêncio sepulcral diante dos rogos frente a tragédia familiar, há outra bastante atual, mesmo o filme tendo sido lançado em 1960 e se passar cerca de seiscentos anos antes. Karin tem um comportamento nada condizente com a época e com a rígida educação que recebeu. Desde o início, percebemos que se trata de um espírito livre. Na manhã que tem que levar as velas, a garota custa a levantar da cama porque está com sono. Ficamos sabendo que, na noite anterior, ficara dançando até bem tarde com um rapaz da região. Ingeri, malvista por ter engravidado ainda muito nova e solteira, implica com a protagonista. Na cabeça dela, a jovem também deveria ser malvista. Karin foi violentada devido ao seu comportamento supostamente frívolo? A resposta é um sonoro não. Todavia, apesar de qualquer pessoa de bom senso não admitir tal hipótese, esta seria uma questão freneticamente discutida nos dias de hoje.

Ingmar Bergman era religioso? Usando como evidência sua produção cinematográfica, muitos vão dizer que não. No entanto, a questão não é tão simples. Como disse um amigo outro dia, o “Homem da Ilha de Faro” era um provocador nato e o objetivo de um provocador é sempre desconcertar seu antagonista, defendendo um ponto de vista diferente, independentemente de acreditar ou não no que está dizendo. Disto isto, os filmes do diretor funcionam do mesmo jeito e podem ser vistos de duas formas: como crítica religiosa ou como endosso. Talvez este endosso seja derradeiro, mas ele está lá. Nas obras bergmanianas, uma porta nunca é fechada sem antes uma janela ser aberta. É assim em A Fonte da Donzela quando, miraculosamente, surge a fonte que batiza o longa-metragem e é assim também em todas as suas outras obras que versam sobre religião. Tal dicotomia é parte integrante da genialidade do sueco.

Desliguem os celulares e excepcional diversão.

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Jungfrukällan
Direção: Ingmar Bergman
Elenco: Max von Sydow, Birgitta Valberg, Birgitta Petersen, Gunnel Lindblom
Distribuição: Janus Films
Data em que estreou: 08/02/60
País: Suécia
Gênero: drama
Ano de produção: 1960
Duração: 89 minutos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN