Bacurau

CRÍTICA | ‘Bacurau’

Karinna Adad

Possivelmente eu fui umas das poucas pessoas que chorou vendo Bacurau, porque ele é intenso e visceral. Ele fala de um Nordeste que o Sudeste desconhece. De um Brasil que o Brazil desconhece. Justamente por isso, Bacurau não é fácil. E quem disser que entendeu e não gostou é porque possivelmente faz parte do Brazil que não merece o Brasil, como cantou Maurício Tapajós e Aldir Blanc.

Leia mais:

FILME BRASILEIRO ‘BACURAU’ VENCE PRÊMIO NO FESTIVAL DE CANNES
‘BACURAU’ TERÁ PRÉ-ESTREIAS ABERTAS AO PÚBLICO PELO BRASIL
‘BACURAU’ É SELECIONADO PARA A MOSTRA PRINCIPAL DO NEW YORK FILM FESTIVAL

Provocador

O terceiro longa-metragem de Kleber Mendonça Filho e o primeiro de Juliano Dornelles começa como tem que ser: provocativo. De longe vemos o universo e o planeta Terra, que, pasmem, não é plano (!), surgir para em seguida nos levar a uma cidade no “cu do mundo” chamada Bacurau. E essa cidade existe para lembrar que, mesmo no Brasil profundo, sem água, sem justiça e sem representante político que a valha tem ainda sertão, suor e muita luta. Sem saber disso de antemão, não dá para compreender a dimensão de um Brasil do Norte que morre, mas também mata.

Brasil x Brazil

O filme é uma preciosa alegoria do Brasil que se transformou em Brazil. Que se rifou e deixou rifar aos interesses estrangeiros à custa de vidas humanas. Em troca, o Brazil recebe nada mais do que desprezo. Em Bacurau, a narrativa leva um fim mais louvável, mais heroico, mais digno de quem tem como herança a resiliência do cangaço. Podemos ainda pensar na obra cinematográfica como uma alegoria muito mais pelo que não é do que pelo que é.

Bacurau (1)

Explico-me. Nada há de caricatural em uma cidadezinha do interior do Nordeste que tem uma travesti casada e adúltera que não é julgada pela comunidade; uma médica na casa dos 60 anos lésbica e respeitada por todos; um grupo de assassinos caçados pelos de fora, mas acolhidos pelos de dentro; um puteiro onde todos conhecem as putas e não lhes jogam pedra; de um povo que se une para lutar pelos seus. O alegórico é pensar que esse lugar existe e que, apesar de desconhecida a sua força, é a única capaz de salvar o Brasil, inclusive do próprio Brazil.

Realidades distantes

Nessa cidade, que é Bacurau, mas que poderia ser qualquer outra do Nordeste do país, o preconceito não ter acolhida parece surreal e aos olhos do Brazil do Sul, incompreensível. E é preciso evidenciar que o filme é explícito em mostrar que há uma distância grande entre os dois Brasis. De um lado, um que resiste, mesmo sem recursos. Usa as armas que tem e, dentre elas, a mais potente é a união, o respeito e a humanidade. De outro, há um que ‘se acha’, que se pensa mais europeu do que brasileiro, que se humilha a troco de nada e que aceita a aniquilação física de seus conterrâneos.

Mas, para além do que é explícito, boa parte de entender Bacurau é aceitar que ele não é óbvio. E nem tinha como ser: o “Brazil não conhece o Brasil”. Não conhece a falta d’água, porque o poder público a vendeu para os poderosos; não conhece os mantimentos e remédios que só chegam no período eleitoral e fora do prazo de validade; não conhece a morte do seu povo, porque quem falou que os ia ‘proteger’ se rendeu ao capital estrangeiro; não conhece o esquecimento e ao mesmo o direito de constar no mapa, de também existir para o mundo dos outros.

Bacurau (3)

‘Bacurau’ é duro como precisa ser

Duro. Bacurau é duro como precisa ser. Por isso, ele pode parecer não palatável para alguns. Para esses posso tentar convencê-los a ir ao cinema dizendo que é um thriller, como afirmou o próprio Kleber Mendonça. Sem economia de mortes e com adição extra de tensão e ação – quase uma espécie de “Mad Max” do cangaço. Mas sendo bem sincera – e respeitosamente discordando do diretor -, não se trata de um thriller, pelo menos, não de um mero thriller. Bacurau, assim como “Aquarius”, é um protesto, uma crítica, um alerta, bem como um aviso. É um filme que para quem é do Brazil, mas ainda assim não precisa de uma analogia cinematográfica estrangeira para convencê-lo. Deve vê-lo para aprender porque não matar o Brasil. Falar mais do que isso é revelar muito do que é mais bem apreciado no cinema.

Por fim, aprendemos que o Brasil que não é o Brazil é aquele que entende o estrangeirismo deste, mas fala na sua língua própria. Quem quiser que entenda! Conhece a tecnologia do forasteiro e faz bom uso dela. Apesar da simplicidade, não se deixa enganar por um drone, ainda que ele mais pareça um disco voador. Bacurau não se trata de mostrar quem é melhor ou pior, afinal de contas todos nós temos nossos pecados, mas de alertar que a subjugação de quem se entende ser o lado fraco pode surpreender e o caçador virar caça. Para mim, é um lindo grito de esperança e qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. Pelo menos não para mim.

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Bacurau
Direção: Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles
Elenco: Barbara Colen, Sonia Braga, Udo Kier
Distribuição: Vitrine Filmes
Data de estreia: qui, 29/08/19
País: Brasil
Gênero: drama
Ano de produção: 2018
Duração: 132 minutos
Classificação: 16 anos

Karinna Adad

Tranquila, mas multitarefada. Sou daquele tipo de pessoa que sempre está fazendo alguma coisa e descobrindo outras tantas pelo caminho. Topo qualquer parada desde que tenha prazer nela e uma das que por mais tempo vem me enchendo de alegria é a escrita. E como boa leitora consigo escrever sobre quase qualquer coisa, por mais que, como uma cientista social em formação, não consiga deixar de fazer agir meu raio problematizador nos meus textos.
NAN