‘Os Miseráveis’ (2019) | CRÍTICA
Cadu Costa
‘Lembrai-vos sempre de que não há ervas daninhas nem homens maus: — há, sim, maus cultivadores‘.
A frase de Victor Hugo (1802-1885), romancista francês, autor de clássicos como Os Miseráveis (Les Misérables, 1862) e O Corcunda de Notre Dame (Notre-Dame de Paris, 1831) preenche como nunca a busca por respostas sobre o porquê de tanta desigualdade e crueldade no mundo. De hoje e de sempre. E é no drama político francês, de mesmo nome da obra-prima do autor, onde o diretor Ladj Ly tenta elucidar algumas questões. É onde ele tenta relatar a dura vida nos subúrbios de Paris, os conflitos raciais e sociais, e a convivência raivosa dos habitantes com as autoridades.
https://www.youtube.com/watch?v=QHnUG_SIYYo&t=6s
Paris real
Os franceses sempre tiveram muita qualidade ao abordar temas como esse em filmes como Entre os Muros da Escola (2008) e Polissia (2011). No entanto, em Os Miseráveis – que dividiu com Bacurau o prêmio do júri do Festival de Cannes – a narrativa funciona mais como um documentário, um verdadeiro retrato da tensão étnica e policial da periferia parisiense. Ou como disse o ator Almamy Kanouté em sua passagem pelo Festival do Rio:
“Sei que vocês estão acostumados com uma Paris da Torre Eiffel ou da Champs-Élysées. Mas é importante que vejam a verdadeira Paris.”
Aliás, a ideia de colocar o espectador em um típico dia de cão, em que as más decisões daqueles que têm o monopólio da força (a polícia) e o diálogo difícil com aqueles que a este devem se submeter (ciganos, negros, muçulmanos, minorias em geral) e onde tudo termina por acender o pavio de um caldeirão inflamável e incontrolável, é executada com maestria.
E esse misto de ficção e documentário executado da maneira mais realista possível colocaram Os Miseráveis, com justiça, na disputa de Melhor Filme Internacional no Oscar 2020.
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O diretor Ladj Ly, um parisiense de origem africana que cresceu na violenta Montfermeil, acompanhou de perto os protestos que tornaram seu bairro no principal ponto de revolta em 2005 quando policiais mataram covardemente dois garotos. Como profundo conhecedor dessa França diversa e preconceituosa, Ly nos mostra de cara a que veio.
A trama
A sequência inicial de como a vitória da Seleção Francesa, formada em sua maioria por imigrantes, na Copa do Mundo de 2018, impacta e inflama pessoas de várias classes e etnias pelas ruas de Paris – num momento onde a própria França enfrentava uma polaridade similar à nossa contra a imigração – é simplesmente emocionante.
Já ali, somos apresentados aos principais personagens do longa: os meninos que vivem no subúrbio e os policiais da brigada anticrime. No papel das autoridades conhecemos o novato naquela divisão Stéphane (Damien Bonnard), o violento Chris (Alexis Manenti) e o emocionalmente fraco Gwada (Djibril Zonga). Chris e Gwada possuem métodos nada convencionais de tratar os menos favorecidos e logo imaginamos o conflito que isso irá causar entre eles visto que, Stéphane não compartilha dessa forma de ser policial.
Um pouco de Brasil
Muitos de nós podem enxergar um pouco de Brasil retratado ali, como os filmes Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007), e isso se deve à sua alta carga de violência extrema e marginalidade assim como a postura impactante e visual com que Ly filma os acontecimentos e desenrola sua narrativa.
Aliás, pessoas (poucas, é verdade) apontam que um defeito do filme possa ser a forma como tudo justamente é mostrado. Que deveria haver uma construção mais plausível dos tais ‘miseráveis’ ou que tudo passa a ser apenas o ‘chocar por chocar’.
Sinceramente, mas ‘choque pelo choque’ são filmes e séries altamente valorizados e super hypados e que não dizem nada a alguém e só mostram cenas grotescas de sangue, violência e gritaria. Alguém aí disse Midsommar? Um exemplo de como um tremendo lixo simplesmente é alçado ao status de obra-prima cult justamente por sua violência gráfica.
‘Terror’ de verdade
A esses, Ladj Ly mostra que terror não é um assassino frio e psicopata perseguidor de vítimas indefesas com uma faca na mão ou seitas grotescas. O verdadeiro terror usa farda (ou ternos) e persegue vítimas as quais devia proteger pela simples noção de que podem. É a sensação de prazer que o poder proporciona.
O encerramento é executado por meio de dor, de revolta e sim, de vingança. Não há final feliz, e ao lembrarmos do título do longa e do que se desenvolveu até seu clímax, é difícil acreditar que aquela multidão do início, quando o esporte une uma França fornada por brancos e negros, crianças e adultos, homens e mulheres, consiga sobreviver alheia à violência que a cerca.
Realidade dura
Talvez seja duro enxergar a realidade, para alguns impossível que isso aconteça em sua esquina, mas Os Miseráveis só nos lembra que o mal, a violência extrema, a crueldade sempre foram inerentes ao homem. Então, querer construir ‘narrativas mais plausíveis’ em cima da realidade é que transformou o mundo na polaridade que é hoje.
Enfim, a realidade é nua, é crua, é dura. E nisso seu outro concorrente ao Oscar, Parasita (2019), também dialoga. Seja qual for o vencedor do prêmio, o discurso já foi dado. Querer fugir do debate ou romantizá-lo só mostra o quanto ainda estamos longe de enxergar (ou querer enxergar) o verdadeiro mal.
A saber, Os Miseráveis estreia dia 16 de janeiro de 2020.
*Filme visto no Festival do Rio 2019
::: TRAILER
::: FICHA TÉCNICA
Título original: Les Miserables
Direção: Ladj Ly
Elenco: Damien Bonnard, Alexis Manenti, Djibril Zonga
Distribuição: Diamond Films
Data de estreia: qui, 16/01/20
País: França
Gênero: drama
Ano de produção: 2019
Duração: 102 minutos
Classificação: 14 anos