Deu no Jornal

Demétrius Carvalho

Puta que pariu! Sinceramente eu não contava com isso. O carro na primeira página do jornal. Para piorar, hoje as fotos do jornal são mais coloridas e vivas do que a vida real. A morte é muito mais morte se entrar em cadeia nacional no horário nobre. A matéria dizia que o carro havia sido incendiado por volta de 3:00h ou 4:00h e agora seria levado à uma perícia para que pudesse ser identificado através do número do chassi e assim, poderem chegar no dono do carro. Tecnicamente eu não sou o dono do carro…
Se eu não tivesse deixado ele naquela rua esquisita. Juro que não procurei pelo local, apenas estacionei, ateei fogo e andei um quarteirão que dava em uma rua movimentada onde já havia enxergado um ponto de táxi. O Wanted JM no muro não era visível de noite. Quando vi a foto na capa do jornal, foi a primeira coisa que eu vi. Só depois percebi que era o meu carro, ou do Roberval. Brincadeira de mal gosto do acaso. Se encontrassem o dono do carro, acabariam inevitavelmente chegando em mim. A fixação gritava “Wanted João Marcos”. Claro, se chegassem no Roberval, eu estaria com um problemão. Isso já seria esquisito.
O carro eu havia trocado algumas horas antes “pau a pau” como se diz na gíria por um Corolla 2014. Pelo menos foi o que dei entender ao Roberval. Sendo bem sincero, a minha idéia era parecer premiar Roberval com uma pseudo boa ação minha. Essa boa ação na verdade era ótima ação… para mim, afinal, eu precisava era da pasta do seu Rubens bem longe do Roberval. O que fiz? anunciei-lhe o ocorrido com o Rubens e que ele agora era vice-presidente da empresa. Não, melhor eu lhe dar o Corolla e colocar um testa de ferro meu de vice-presidente.
Ali por volta de 17:25h seu Rubens teve um ataque fulminante do coração. Não deu 10 minutos para que os médicos chegassem, mas não deu tempo. Procurei de todas as formas reanimar ele. Teria dado a vida para salvar a dele, mas depois que ele se foi? Eu quase entrei em choque, mas lembrei da pasta e do testamento que ele havia feito durante o final de semana. Ele igualava o “esforçado Roberval” em uma divisão na presidência da empresa entre eu e ele. Fiquei transtornado com essa decisão. Nem classe o homem tinha e não entendo por que eu, o vice-presidente teria que dividir-me com o nosso esforçado gerente geral. Senti-me traído por tantos anos ali dentro. Não adiantava Rubens dizer que ele era muito simpático e bem visto na empresa e que isso equilibraria com a minha posição mais sóbria e séria. A única consideração que ele teve por mim, foi avisar-me antes que o Roberval.
Pouco antes, 14:00h, ainda voltando do almoço, Rubens, em nossa segunda reunião, me explicou que se afastaria da empresa em um mês. Sentia o peso da idade. Sentia que sua presença ali não era mais a força vital que movia a empresa. Pelo contrário, ele estava acomodado. Querendo gozar de bons dias pelos dias que lhe restavam. Eu de cabeça baixa, balançando freneticamente a perna e rodando a colher na xícara do café pode ter alertado ele para que eu não estava satisfeito com aquilo. Roberval era legal. Almoçamos juntos, nós três, mas não era para tanto. ele era legal ali na gerência geral. Não ao meu lado como gerente…
Antes um pouco, o almoço. O prestativo Roberval oferece carona com o seu carro para mim e Rubens. Nem sei que carro era. Esses carros com mais de 20 anos eu só conheço Fusca, Fiat e Kombi. O resto é carro antigo, mas o humilde Rubens, que não liga para isso… parecia não perceber o cheiro do couro novo, legítimo do meu Corolla. Não tinha um mês de uso. Cheiro de poder, não aquele cheiro de podre, mas ok. Fora a falta de classe, o Roberval era super competente, simpático, cordial e leal. Essa lealdade por sinal foi um fator decisivo para a decisão do Rubens e por isso ele nem ligou quando percebeu que havia esquecido a pasta no carro dele. Mesmo por que se deu conta quando estava comigo. Roberval não sabia e ele pegaria ao fim do expediente.
Ainda pela manhã, Rubens me convocou para a então primeira reunião entre nós no dia. Estava com o laudo da equipe de segurança da empresa. Uma empresa séria tem que burlar algumas normas éticas pelo bem de todos, por isso, ele queria saber do meu parecer sobre as pessoas investigadas na empresa. Fui categórico. Dar corda para Adílson se enforcar só e o despedirmos por justa causa, mas o Roberval. Esse se negou a receber o suborno proposto por ele. Um cara do bem. Dos que fazem as coisas acontecerem como deveria acontecer. Ele era o braço direito para as ações operacionais. Eu não perdia tempo com esse trabalho de peão que ele fazia, mas toda empresa precisava de pessoas idôneas como ele. Mal sabe Roberval que seu nome foi submetido ao sistema de inteligência da empresa por suspeitas com ligação fraudulenta com o Adílson.
Na noite anterior, recebi uma ligação por volta de 21:00h. Rubens havia me dito que precisávamos tomar uma decisão forte e enérgica o quanto antes pelo bem da empresa. Disse-lhe que poderíamos segurar as coisas como estavam sem maiores danos por uns 10 dias, mas ele disse que a consulta com o médico no dia anterior havia dado novos rumos à sua vida. Ele havia escrito um testamento e a nova reorganização da empresa que dependeria apenas de meu parecer sobre as pessoas investigadas.
Tudo começou cerca de dois meses atrás com a foto do carro do Roberval estacionado nas portas dos fundos da empresa por volta de 3:00h ou 4:00h da manhã…

Demétrius Carvalho

Demétrius Carvalho é músico, multi-instrumentista e produtor musical de origem, mas anda com frequência em outras artes passando pela literatura, fotografia. Blogueiro, da suas impressões ainda sobre cinema, artes plásticas e definitivamente é multimídia adorando sobrepor arte sobre arte.
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