Nilton Resende fala sobre o curta ‘A Barca’, baseado em conto de Lygia Fagundes da Silva Telles
Vanderlei Tenório
No dia 19 de abril de 1918, nasceu Lygia Fagundes da Silva Telles, reconhecida como uma das mais importantes escritoras brasileiras. Além de advogada, foi romancista e contista, sendo uma representante proeminente do pós-modernismo.
Suas obras abordam temas clássicos e universais como a morte, o amor, o medo, a loucura e a fantasia. Lygia foi membro da Academia Brasileira de Letras e recebeu prêmios renomados como o Jabuti e o Camões, destacando-se na terceira geração modernista, também conhecida como pós-modernismo.
As narrativas de Lygia Fagundes da Silva Telles são marcadas por uma prosa intimista, com foco na dimensão psicológica dos personagens, e ocasionalmente apresentam elementos de realismo mágico ou fantástico, sempre mantendo uma visão crítica da realidade política e social de sua época. A autora afirmava ser uma testemunha do tempo e da sociedade em que vivia, através de sua escrita.
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Nilton Resende e Lygia
Para celebrar o centenário da renomada escritora Lygia Fagundes Telles, o Ultraverso apresenta uma entrevista conduzida pelo nosso redator Vanderlei Tenório entre os dias 20 e 23 de fevereiro de 2021, com o cineasta, roteirista, ator, escritor, preparador, professor universitário e diretor de elenco Nilton Resende.
Resende é o responsável pelo premiado curta-metragem “A Barca”, inspirado no conto “Natal na Barca” da autora homenageada. O curta-metragem foi um dos projetos contemplados pelo IV Prêmio de Incentivo à Produção Audiovisual em Alagoas da Secult, em parceria com os Arranjos Regionais do FSA. A produção é da La ursa Cinematográfica em co-produção com a VTK e já participou de diversos festivais e mostras de cinema, tanto nacionais como internacionais.
Quais os principais desafios do pré-produção e pós-produção do curta-metragem?
NILTON RESENDE: Foi um filme bastante desafiador, desde a escrita do roteiro, porque era preciso haver cuidado para os diálogos não ficarem muito literários. E há uma grande casca de banana quando vamos adaptar textos de parecem “feitos pro cinema”. Parecem ter uma enganosa facilidade.
Por isso, era preciso haver a atenção para não haver apenas uma transposição do conto para a tela, sem as alterações necessárias. Há símbolos que funcionam no texto, mas que não ficariam bons no filme. Para isso, contribuíram muito três pessoas: o Rafhael, a quem eu mostrei o primeiro tratamento do roteiro e que fez pertinentes comentários a respeito; o Nivaldo Vasconcelos, com quem tive encontros para fazermos uma leitura conjunta e pormenorizada de um dos tratamentos — foi muito importante tê-lo como essa pessoa com quem dialoguei mais aprofundadamente a respeito da escrita.
E por fim, a Nina Magalhães, que é o nome que mais aparece nas fichas de inscrição do filme nos festivais: Produtora Executiva, Diretora de Produção, Diretora de Arte. Ela é onipresente — é Nina, a Ubíqua. Ela conseguiu, na construção daquele mundo ficcional, dar à embarcação e aos objetos de cena o poder simbólico que estava no conto e que não podíamos utilizar do mesmo modo. Tudo isso nos desafiou quanto à adaptação.
Tivemos ainda aqueles desafios técnicos, relacionados ao som e à luz. Quanto ao som, o motor era uma presença constante, e para que ele não se sobressaísse demais, tivemos de sempre navegar a favor da corrente, para que o moto pudesse ser ligado em sua potência mínima, o que diminuiria seu barulho. Felizmente, tivemos na condução da barca o proprietário dela, o Alanklevs de Oliveira, que é nativo da Massagueira e conhece cada banco de areia, cada canal, cada corrente… Isso foi primordial.
Mas, mesmo em sua potência mínima, o som permanecia e não era baixo. Então, utilizamos um “abafa peido”, uma manta, que colocamos na traseira da barca, como uma grande cortina a tentar separar o set e o motor. Tudo isso, aliado ao trabalho de som direto do Léo Bulhões e, posteriormente, à edição e mixagem do Lucas Coelho, deu-nos o que vemos na tela: o som constante do motor da barca, mas ali como algo bem-vindo e necessário; as falas tão audíveis das personagens.
Houve quem perguntasse se o filme havia sido dublado. Mas não foi. Há apenas duas frases que foram dubladas: uma porque ficou um pouco baixa; e outra, porque preferi optar pela frase dita com uma leve mudança no tom da fala.
Quanto à luz, tivemos uma equipe muito boa na fotografia: Michel Rios, na direção de fotografia; Chapola Silva, na assistência de fotografia e operação de câmera; Moab de Oliveira, na iluminação e na elétrica. Quando o filme, no ano passado, ficou como um dos 15 indicados a Melhor Fotografia segundo a ABC – Associação Brasileira de Cinematografia, os três rapazes, nosso talentosos rapazes, falaram a respeito dos desafios e soluções numa matéria do Alagoar. As falas deles podem ser lidas aqui.
Ajudou na fotografia o período em que filmamos. Esse filme tinha de ser feito num período não chuvoso. Além disso, eu queria que fosse durante a Lua Cheia — isso, por conta da luminosidade e por conta mesmo de seu simbolismo, pois ela favorece a expansão, a abundância, a força e o movimento. Filmarmos nesse período seria termos esse astro noturno abençoando-nos durante todo o tempo. E que bom que foi assim.
Do contrário, não teríamos no filme aquela luona linda iluminando a barca e a laguna Manguaba. Algo interessante é que a semana de filmagem era a última semana possível daquele semestre, porque a próxima Lua Cheia seria apenas em março, já no período de chuvas. Felizmente, tudo deu certo. Felizmente, a Lua nos abençoou.
Na pós-produção, estivemos nas mãos do mago Marcos André Caraciolo. ALERTA DE SPOILER Foram necessários quase seis meses para se encontrar o tom ideal da pele do bebê, que foi recriado digitalmente por ele. Vimos muitas imagens de bebês recém mortos, de pessoas mortas… Foram feitos muitos testes… Alguns ficaram assustadores demais, outros ficaram sutis demais.
Acredito que felizmente encontramos o tom ideal FIM DO SPOILER. Outro trabalho dele foi retirar de cena o condutor, que apareceu algumas vezes, por trás da personagem da Aline Marta. E também foi necessário mudar de lugar uma das atrizes e retirar de cena eu e o Moab de Olliveira, que estávamos deitados no chão da barca em algumas tomadas. O trabalho do Marquinhos foi incrível, porque imperceptível. Os efeitos especiais do filme ficaram muito bons, porque parecem não existir. Mas, estão lá.
Como ocorreu o processo de pensar e construir o curta?
NILTON RESENDE: Eu sempre sonho em adaptar os textos literários que amo. Tenho uma lista de contos e livros que pretendo um dia transformar em curtas, longas, minisséries, séries… Tenho mesmo uma pretensão de me especializar em adaptações literárias. O conto “Natal na barca” foi o primeiro conto que li na minha vida, aos 16 anos de idade. E por muito tempo quis adaptá-lo. Durante uma época em que eu dava aula no Colégio Santa Madalena Sofia, montei um grupo de cinema com os alunos: assistíamos a filmes, fizemos um curta, começamos a pensar na filmagem de “Natal na barca”.
Chegamos até a visitar locações, fizemos uma travessia de barca até Coqueiro Seco, partindo do Vergel. Mas, era fim de ano, as filmagens iam ficar para o ano seguinte… Não aconteceu. Desse grupo de cinema, fizeram parte a Larissa Lisboa e o Felipe Guimarães, que hoje são duas pessoas muito presentes em nossa cultura e muito importantes, principalmente para o audiovisual. Uns quinze anos depois, o sonho realizou-se, e a adaptação do conto veio a ser o meu primeiro filme. Isso eu devo ao Rafhael Barbosa, que sabiamente tentou me demover da ideia de realizar um longa antes de dirigir um curta — eu sofria demais da arrogância dos ignorantes.
Ele me instigou muito e me fez pensar em algum conto que eu porventura tivesse interesse em adaptar. Daí, me lembrei do “Natal na barca”. Mostrei a ele o conto, ele amou e pensou até em ele mesmo roteirizar e filmar. Aí, quando vi que eu podia perder de realizar um sonho, por causa da arrogância de querer fazer algo para o qual ainda não estava pronto, eu disse ao Rafha e a mim mesmo: eu vou adaptá-lo e dirigi-lo.
Conta pra gente um pouco sobre sua relação pessoal com a obra de Lygia Fagundes Telles.
NILTON RESENDE: O primeiro livro da Lygia que li foi o romance As Meninas, quando eu tinha 16 anos. Eu me apaixonei e comecei a ler tudo dela. Posso dizer que grande parte do que sou como pessoa eu devo às obras dela. Em seus romances e contos, eu me reconheci e me conheci. Eu reconheci minha família… Um dos contos, “A Medalha”, salvou minha relação com minha mãe, porque num dado momento eu me recusei a que nossa relação terminasse como termina a relação entre a jovem protagonista e sua mãe. Num dos romances, vi uma frase que uma jovem disse à sua mãe, e que achei de uma estupidez enorme — daí, percebi que eu já havia falado o mesmo ao meu pai.
Lygia é uma espécie de amuleto em minha vida — o meu amigo Milton Rosendo (poeta) sempre me diz isso. E é uma verdade: minha vida como professor é abençoada por ela, pois, há mais de vinte anos, toda minha primeira aula é a leitura dramatizada de seu conto “Venha ver o pôr do sol”; literariamente, minha vida é abençoada por ela, pois minha formação como leitor e como escritor passa por suas obras; afetivamente, minha vida é abençoada por ela, pois foi com suas personagens tão cheias de segredos, carência, escamoteação, medo, incompletude, insegurança, inveja, agressividade, mentira… foi com elas que aprendi sobre como somos todos nós, que aprendi que de perto todo mundo é frágil, que aprendi que grande parte do que nos compõe é uma densa sombra; no cinema, minha vida foi abençoada por ela, pois meu primeiro filme, A Barca, é baseado num lindo conto seu que nos fala de como vida e morte navegam juntas sobre o leito do mistério; humanamente, minha vida é abençoada por ela, pois muito do que sou é a soma de todos esses aprendizados.
Costumo dizer para mim mesmo que, após minha família e meus amigos mais íntimos, a Lygia é a pessoa mais importante da minha vida, e eu não seria quem sou sem ela. Isso nos mostra o poder da literatura, o poder da arte. Numa de minhas últimas visitas a ela, eu lhe disse: “Lygia, você é para mim a paisagem mais bonita de São Paulo” — ela sorriu.
Como foram as filmagens e como está sendo para você assimilar a repercussão da obra?
NILTON RESENDE: As filmagens foram tranquilas e num ambiente de grande afeto, afinal, éramos um grupo de amigos dentro de uma pequena barca, perseguindo um sonho. Nós vibramos muito a cada novo festival, a cada prêmio, a cada comentário… Tudo é novidadeiro, porque tudo é inesperado. Sempre que eu revejo o filme, é como se o visse pela primeira vez, e fico vibrando com o trabalho de toda a equipe, que tornou ele possível, que fez ele existir.
Amo ver o elenco em cena. Amo mesmo. E quando falo elenco, falo da Ane, da Wanderlândia, da Aline, do Yan, do Rogério e da Barca.
Qual a maior dificuldade em escrever um curta-metragem?
NILTON RESENDE: Acho que um curta está para o conto assim como um longa está para o romance. Ambos têm suas próprias exigências. De imediato, poderíamos pensar que no curta/conto, algo necessário é a exatidão, a economia. Mas, cada projeto é um projeto. Então, cada curta terá suas exigências específicas. Cada projeto artístico tem suas especificidades estéticas, e o que estará impresso nele deverá ter a ver com isso, e não com regras que lhe sejam exteriores. O que importa é a sua regra interna, sua alma. Isso é o que deverá lhe reger. Não sei e não quero dizer algo que pareça normativo.
Qual sua/seu roteirista favorita/o? Por quê?
NILTON RESENDE: Não sei dizer. Sinceramente. E não quero dar uma de “entendedor de roteiros”. Qualquer um dos filmes que citei acima poderia ser considerado um filme com roteiro de que gosto. E acrescentaria um filme, o Fim de Caso (1999), dirigido por Neil Jordan e roteirizado também por dele, a partir do romance homônimo escrito pelo Graham Greene. Há também O Assalto (2001), escrito e dirigido pelo David Mamet… Acho ele muito foda. Há Os Últimos Passos de um Homem (1995), escrito e dirigido pelo Tim Robbins, adaptado do livro homônimo da irmã Helen Prejean. E Stalker (1979), do Andrei Tarkovski — esse foi um dos primeiros filmes a me chamar a atenção para além das personagens.
Porque, na verdade, ao assistir a um filme, sempre procurei as personagens. Nunca me vi pensando sobre o roteiro. Muito embora, claro, seja ele que me dá as personagens. Mas acho que dá para entender o que eu quero dizer: nunca pensei na estrutura por trás. Apenas agora, que estou escrevendo roteiros, é que começo a pensar neles, a pensar como, através deles, dar ao mundo as personagens que pretendo dar.
Quais são os seus próximos projetos?
NILTON RESENDE: Um curta de ficção a ser filmado aqui em União dos Palmares, com uns jovens daqui. E um longa de ficção chamado Edifício Lygia, cujo roteiro está em seu 19º tratamento, e que também é baseado na obra de Lygia Fagundes Telles. Os textos-base são três contos: “Antes do Baile Verde”, “A Medalha”, “Emanuel”. Mas, as personagens são fusões de personagens de vários livros, inclusive de romances, como As Meninas e Ciranda de Pedra.
Ele se passa num edifício suburbano, um edifício de três andares em que vivem as protagonistas. Ele se passa num dia, da quinta para a sexta-feira de carnaval. Adriana, Alice e Tatisa, que moram aí, estão insatisfeitas com suas condições e farão o que estiver a seu alcance para se libertarem do que as oprime, mesmo que tenham de ir até as últimas consequências, mesmo que tenham de fazer o que seria julgado imoral, como valer-se do egoísmo, da crueldade, da mentira. Elas querem sobreviver. E nessa situação, o instinto fala mais forte.
Suas últimas palavras (fique à vontade)
NILTON RESENDE: Para todos, principalmente os que sabem de sua fragilidade e os que querem fazer arte, eu diria o que diria a mim mesmo se me visse criança, adolescente, jovem: não tenha medo. E para a vida, eu diria o que venho dizendo há alguns meses: muito obrigado. E apenas há alguns meses, mesmo, pois eu ainda não havia alcançado a maturidade suficiente para compreender o que é ter gratidão. Mas não sei explicar o que é. Apenas, vivo isso. Tento viver isso.
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