Crítica de Filme | O Lobo Atrás da Porta

Bruno Giacobbo

Tema de diversas reportagens na época e de um famoso programa televisivo na década de 90, o sequestro seguido de assassinato da menina Tânia Maria Coelho Araujo, ocorrido em 1960, é um dos crimes mais chocantes da crônica policial carioca. A criminosa, Neyde Maria Lopes, ficou popularmente conhecida como a “A Fera da Penha”. Casos como este, quase sempre, geram bons filmes. São histórias universais, que mexem bastante com o público. O único problema é que, quando filmadas de forma fidedigna, correm o risco de parecerem todas iguais. Diretor e roteirista de O Lobo Atrás da Porta, longa-metragem que transporta para os nossos dias, com outros nomes e pequenas diferenças, esta trama, Fernando Coimbra sabia disto. No entanto, ele conseguiu realizar uma obra incomum na cinematografia nacional. Com muita habilidade, misturou doses cavalares de drama, suspense e uma pitada generosa de sarcasmo. Durante suas quase duas horas, o filme assusta e horroriza como poucas coisas que assisti nos últimos tempos.

Muitos aspectos fazem desta uma película excepcional. O primeiro é a sua narrativa anárquica, fruto de um roteiro muito bem escrito. Na metade inicial, assistimos a um mosaico de versões, cronologicamente embaralhadas, sobre o crime. À medida que o delegado (Juliano Cazarré) colhe os depoimentos de todos os envolvidos, entre eles os pais da menina, Bernardo (Milhem Cortaz) e Sylvia (Fabíula Nascimento), vamos conhecendo novos fatos sobre a história ou, melhor ainda, descobrindo que existe mais de uma versão para os mesmos. Já na metade final, a narrativa se desenrola de forma linear. É o depoimento de Rosa (Leandra Leal), amante de Bernardo e principal suspeita, que interessa. Aparentemente, só ela pode elucidar o caso.

O Lobo atrás da Porta Meio1

Outro aspecto diz respeito ao excelente trabalho de direção. O enquadramento utilizado em algumas passagens por Coimbra e pelo diretor de fotografia, Lula Carvalho, é diferente do que estamos acostumados a ver em filmes nacionais. A câmera foca em um ponto específico deixando o restante da cena desfocado. Há ainda uma sacada genial, uma mesma tomada filmada por dois ângulos diferentes, que marca a primeira e a ultima participação de Leandra. A genialidade não está apenas na forma como as lentes captam a atriz e, sim, em seu significado dentro da história. No início não sabemos nada sobre a personagem, por isto ela é apresentada de costas, no fim, já com todos os seus segredos revelados, ela é mostrada de frente.

Igualmente geniais são as interpretações dos protagonistas. Desde o começo sabemos como a história terminará. Não existe mistério nisto. Contudo, lá pelas tantas, pinta uma dúvida atroz quanto ao desfecho de Bernardo e Rosa. O pai vitimado pela tragédia que se anuncia é um perfeito canalha. Trai a esposa despudoradamente e não se envergonha nem um pouco. Acuado, ameaçado, se mostra capaz de qualquer coisa. O mesmo serve para amante e principal suspeita. Ora surge como a mocinha ingênua, sonhadora, traída pelo homem que dizia amá-la. Ora surge como a mulher vingativa, sem um pingo de compaixão. Qual é a personalidade dominante? Por melhor delineados que sejam estes papéis no roteiro, as atuações de Cortaz e Leandra conferem um realismo magnífico aos personagens. Um pouco atrás, mas brilhante também, vem Cazarré. Sarcástico, debochado, é ele que desanuvia o ambiente e arranca alguns risos, ainda que nervosos, nas cenas da delegacia.

O Lobo Atrás da Porta marca a estréia de Coimbra em longas-metragens. Até hoje sua praia eram os curtas. A transição, sempre um batismo de fogo, foi feita de maneira sublime. Não há nenhum retoque a ser feito. Ao público, que em breve, tenho certeza, deixará as salas de exibição impressionado e horrorizado com o que assistirá na telona, resta esperar ansiosamente pelo próximo trabalho deste competentíssimo cineasta.

Desliguem os celulares e boa diversão.

BEM NA FITA: Um filme raro na cinematografia nacional. Brilhantemente dirigido, escrito e com os atores perfeitos nos papéis principais. Desde já, disputa com Hoje Eu Quero Voltar Sozinho a condição de postulante brasileiro ao próximo Oscar.

QUEIMOU O FILME: O que falar contra? Nada.

FICHA TÉCNICA:
Direção: Fernando Coimbra.
Elenco: Leandra Leal, Milhem Cortaz, Fabíula Nascimento, Tamara Taxman, Juliano Cazarré, Paulo Tiefenthaler, Thalita Carauta, Isabelle Ribas, Antonio Sabóia e Emiliano Queiroz.
Produção: Caio Gullane, Fabiano Gullane e Rodrigo Castellar.
Roteiro: Fernando Coimbra.
Direção de Fotografia: Lula Carvalho.
Montagem: Karen Akerman.
Direção de Arte: Tiago Marques.
Trilha Sonora: Ricardo Cutz.
Duração: 101 min.
País: Brasil.

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN