Entrevista | Anita Rocha da Silveira (roteirista e diretora de Mate-me Por Favor)

Malu Portela

O Blah Cultural teve a oportunidade de conversar com Anita Rocha da Silveira, roteirista e diretora do filme ‘Mate-me por favor’, ganhador do prêmio especial Bisato D’Oro no 72° Festival de Veneza, e que faz sua estreia brasileira no Festival do Rio.

A violência do mundo real inspirou a primeira ficção da diretora Anita, “Mate-me por favor”. Aos 7 anos, ela viu a morte brutal da atriz Daniella Perez, filha de Glória Perez, e ficou impressionada. Duas décadas depois nasceu seu longa que explora o fascínio de adolescentes por uma série de crimes sombrios na região da Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio.

Confira nossa entrevista na integra:

Blah Cultural : ‘Mate-me por favor’ é o seu primeiro longa depois de três curtas de sucesso, tendo sido um deles ‘Os mortos-vivos’ apresentado na mostra paralela Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes. Como você avalia essa transição do curta para o longa?

Anita Rocha da Silveira:  No meu caso, o longa tem muito dos meus curtas. No ‘Mate-me…’, eu segui trabalhando com os mesmos temas que eu trabalhei nos meus curtas, então pra mim foi uma continuação e também um modo de fechar um ciclo desses três curtas que tratavam de jovens, tratavam de desejos, de paixões… E aí chegar no ‘Mate-me…’ foi um caminho, um modo de fechar tudo o que eu vim trabalhando nos curtas, só que com um pouco mais de tempo para poder desenvolver tudo.

BC: Vocês foram notícia no site Variety que é uma das bíblias cinematográficas internacionais. Um dos pontos tocados foi o incentivo público do atual governo para a produção de conteúdo audiovisual nacional, o que ainda permitiu ao que eles chamam de “New Brazillian Cinema” (livre tradução: Novo Cinema Brasileiro), onde há um abandono da temática de favela/pobreza e surgem filmes como ‘O lobo atrás da porta’ (de Fernando Coimbra), ‘Hoje eu quero voltar sozinho’(de Daniel Ribeiro), ‘Casa grande’( de Felipe Barbosa), ‘O som ao redor’( de Kleber Mendonça Filho), entre muitos outros que permitem uma exploração maior de gênero, em que ‘Mate-me por favor’ seria o grande representante do suspense, terror… Como você enxerga essa perspectiva estrangeira? Você encaixaria ‘Mate-me por favor’ dentro dessa visão?

Anita Rocha da Silveira:  (…) Acho que quando ele falou não tanto da questão do gênero, mas sim de algo um pouco mais inesperado vindo da América Latina. Eu acho que o filme tem, sim, traços de terror, suspense, fantasia mas também não consigo ver como um filme tradicional de gênero. Acho que de certa forma é um filme mais híbrido que mistura uma série de gêneros, tem também humor, tem também todo um drama juvenil no meio, mas acho que é um filme mais pra fantasia que talvez pro terror, sabe, mais pra parte fantástica. Mas essa questão dessa mudança de perspectiva, no meu caso, eu tava tratando de um assunto que eu conheço, de certo modo, da minha classe social. Também não acho que vão deixar de haver filmes que tratam das questões da favela e coisas assim… Mas, no meu caso, eu optei por tratar de um tema que eu conhecia mais, a classe média do Rio de Janeiro, a Barra da Tijuca, também me inspirei um pouco em certas emoções e situações que eu vivi, que eu presenciei na minha juventude, é claro que exagerando muito mais no longa. No meu caso é muito mais uma questão de eu estar tratando de um mundo particular meu do que certa forma refletindo sobre ‘nós vamos mudar uma perspectiva’. Mais uma vontade minha de tratar de algo que é próprio, mas de certo modo, no filme, acho que eu também to tratando dessa nova classe média, do novo avanço que tá acontecendo, essa questão da segurança e dos medos, de uma classe média que se muda para esse bairros, para esse condomínios achando que ali tem uma segurança, querendo que seus filhos cresçam trancados, isolados num condomínio.

BC: Com alguns expoentes internacionais como Lena Dunham, nos Estados Unidos, e Xavier Dolan, no Canadá (não passaram pela experiência do curta, se lançaram através do longa-metragem), você acha que o melhor jeito de um cineasta se lançar no mercado ainda é o curta-metragem?

Anita Rocha da Silveira: Olha, eu não sei realmente, eu vejo roteiristas, agora, dirigindo, acho que isso não é algo tão amarrado. No meu caso, através dos meus curtas, eu pude ter uma projeção, eu consegui que uma produtora se interessasse no meu trabalho (…) tem muitos editais , principalmente na Europa, que você precisa ter um trabalho prévio para apresentar, para poder concorrer, vejo muitas pessoas com um projeto de direção que normalmente vem do curta-metragem, mas no meu caso foi meu caminho, acho que talvez seja o melhor caminho pra começar, aos poucos, com formatos menores, encontrando sua voz, encontrando sua temática… E a partir daí, quem sabe, seguir para um longa ou também voltar a fazer um  curta. Não consigo também ver um curta como necessariamente um caminho pro longa, eu espero voltar a fazer curta, logo mais.

BC: Esse filme é predominantemente feminino. Como você vê hoje em dia a inserção da mulher no mercado cinematográfico?

Anita Rocha da Silveira: Pra mim é muito incômodo a quantidade de mulheres (…) realmente é muito pouco. Eu me lembro da minha faculdade de cinema, eu me formei no início de 2008, estudei até final de 2007, não faz tanto tempo assim, e eu lembro que realmente na turma era meio a meio, homens e mulheres, ás vezes mais mulheres do que homens, mas hoje, da minha geração, eu não sei de nenhuma outra mulher dirigindo, mas sei de alguns rapazes. E acho que, de certo modo, tem uma certa criação de pequenas coisas que são ditas, que mulher que é líder é mandona, mulher  que quer se impor é mandona, o homem é líder. Essas coisas que você cresce escutando. Certos preconceitos vão entrando na gente. Na própria faculdade de cinema, coisas muito ridículas que eu escutava como ‘Ah, mulheres são ótimas montadoras, porque montagem é que nem costura’, umas coisas assim. Então, acho que de certo modo… Pra mim, assim, eu dirigi meu primeiro curta muito por acaso, eu não pensava em dirigir, não era algo que me ocorria, até há pouco tempo eu refleti sobre isso, até aos 21, quando eu fiz 22, fiz meu primeiro curta, eu não pensava muito em dirigir, foi algo que ocorreu por acaso. Eu tive a perda de uma amiga minha, e pra sair um pouco de um buraco eu resolvi fazer um curta, e o curta teve uma ótima recepção. Até então falavam ‘você é uma ótima assistente’, ‘você é uma ótima roteirista’, ‘uma ótima montadora’. Chega em uma situação que a mulher não consegue nem se ver em uma posição de liderança e, sim, é muita piadinha que a gente escuta. Eu lembro muito quando eu viajava com meus curtas pra festival, de um festival ter doze curtas selecionados e eu ser a única mulher diretora entre os doze. Vira e mexe, em um laboratório de roteiro, normalmente é assim, são doze homens e duas ou três mulheres no máximo, sempre em uma posição de ser minoria. Eu realmente espero muito que isso mude. Ainda não sei como, mas de certo modo vendo outras mulheres dirigindo, ocupando esse espaço. E acho que é uma coisa que acontece não só na direção, mas você vai ver em banca de edital, normalmente a maioria é homem, os selecionadores de festival, a maioria são de homens, os júris também. É claro que sempre tem exceções e é incrível ter exceções, mas a maioria é sempre de homens sendo a figura de poder na indústria, sempre cercando de todos os lados. Mas eu espero realmente que nessa próxima geração venham mais diretoras mulheres com números um pouco mais próximos, para um dia chegar 50/50, porque eu não entendo porque ainda não é mais equilibrado. O mundo tem mais mulheres do que homens, a população feminina já é de 52%. Então eu acho que de certo modo, na parte de diretoras mulheres isso se iguale de alguma maneira também. E também outras funções dominadas por homens como a fotografia, outras como produção e montagem eu já vejo que é muito mais de igual para igual.

BC: Vamos falar propriamente de ‘Mate-me por favor’. Você começou a desenvolver o roteiro durante sua participação no Fábrica dos Cinemas do Mundo  (programa para realizadores de países emergentes no Festival de Cannes)?

Anita Rocha da Silveira: Não, lá eu já fui com o argumento do filme. Eu desenvolvi um argumento no segundo semestre de 2011 e me inscrevi no Fábrica que foi em maio de 2012. Lá foi mais uma oportunidade de encontrar com co-produtores, fazer contatos…

BC: ‘Mate-me por favor’ é nitidamente um filme coming of age, trata desse período de transição que é tão conturbado na vida de um adolescente. Você colocou um pouco da sua experiência pessoal no filme?

Anita Rocha da Silveira: Eu era uma adolescente muito quieta, eu acho que estão lá mas , de certo modo, certos sentimentos e também situações que eu vi, diálogos que eu tive com amigos, umas certas sensações que eu tive adolescente, conversas que eu escutava, uma certa rivalidade feminina que eu sentia um pouco presente. Tem essa questão de eu me inspirar na minha própria vida, muitas coisas que eu presenciei e vi e senti, mas é claro que não teve um serial killer atrás de mim quando eu era adolescente. Mas eu acho que na geração de hoje a grande mudança é a questão da sexualidade. Eu cresci em um colégio imenso no Rio, super tradicional e não existia ninguém que era gay. Pelo menos, não abertamente. Um menino que demonstrasse os mínimos sinais mais afeminados levava porrada. E hoje eu vejo uma geração que é muito mais aberta, que aceita muito mais e que fala muito mais abertamente sobre sexo. E acho que, conversando com as minhas atrizes, está mudando esse lógica que eu tinha na minha época que a menina que ficava muito era piranha. Hoje elas, se for olhar, e os seus amigos, são muito mais que a mulher pode fazer o que quiser. Eu espero que realmente isso siga mais por esse caminho. Ma seu fico feliz de ver essa geração quinze anos mais jovem estar mais tranqüila para falar de sexo, orientações sexuais, e mais tolerante.

BC: Para você qual a relação entre violência e sexualidade que parecem estar tão intrinsecamente ligados no filme?

Anita Rocha da Silveira: Eu cresci muito… É da minha própria criação, da minha mãe falando, que é melhor morrer que ser estuprado. Estupro como sendo o grande medo da mulher. Eu falei com uma amiga que a gente vem de uma geração da paranóia do estupro. Eu lembro quando eu era jovem tinha um boato de que um taxista da companhia tal tava estuprando… Não pode pegar esse táxi, não pode caminhar ali. Eu acho que esse medo do estupro foi uma coisa que eu cresci… É muito forte, é o grande pavor da maioria das mulheres. Essa insegurança, o caminhar de noite sozinha, de pegar um táxi a noite, do que pode acontecer e não conseguir se defender.  Então eu acho que tem essa questão também… Uma personagem fala no filme”será que foi estuprada ou não foi estuprada?”, uma das personagens fica pirando, pra ela o maior terror é isso, mais que morrer é ter sido estuprada antes. Mas, de certo modo, eu coloquei certos medos que tão ali, dessa interação sexual e o personagem da Bia é que vai no caminho oposto, ela não teme, ela vai e se entrega muito mais pelo que o corpo dela tá dizendo, enquanto o resto tá julgando, como o namorado dela que fica se culpando por ter transado, ela é o contraponto disso tudo que é uma menina que não tem essa moral tradicional pesando nela. Ela faz o que o corpo dela pensa, o que o corpo dela sente, sem se deixar levar por esse moralismo, sem se deixar levar  pelo que os outros estão dizendo o que é certo , o que é errado, ela vai seguindo, quase como uma força da natureza.

BC: Você cita o caso da atriz Daniella Perez (filha da roteirista global Glória Perez). Até que ponto o assassinato dela inspirou o filme?

Anita Rocha da Silveira: De certo modo foi a primeira vez que eu tive contato com a morte realmente brutal. Na época eu era jovem, devia ter sete anos na época, acompanhava a novela, no momento não tinha TV a cabo, então todo mundo via novela mesmo, e a morte dela me marcou enormemente, eu fiquei extremamente mal com a morte dela. E eu lembro até que vazaram as fotos dela depois, uma coisa horrível. Então, pra mim foi aquele trauma. Aquela menina linda, maravilhosa, incrível que eu via todo dia na TV… Uma morte tão brutal, tão horrível, com requintes de maldade, sabe, e de certo modo essa imagem ficou na minha cabeça, tive por muito tempo pesadelos com a morte da Daniella. E até hoje eu tento saber o que aconteceu, fico chocada de saber que eles estão livres (…). Isso me marcou. De certo modo, essa imagem do corpo dela foi um embrião pro filme. Também essa questão de ambientar nesses terrenos da Barra, de certo modo acho que partiu dessa memória do crime dela, foi uma pequena inspiração, o embrião para tudo o que veio depois.

BC: Pode explicar como foi a escolha do elenco?

Anita Rocha da Silveira: Eu comecei primeiro testando meninas… Isso foi sete meses antes das filmagens, eu divulguei muito em escolas de teatro, em facebook, não tinha orçamento pra isso, então foi entregar cartaz na mão, colocar no facebook para as pessoas partilharem. Eu recebi email com material de mais de quatrocentas garotas. Muita gente de trinta dizendo que aparentava quinze. Dei uma filtrada, cheguei a duzentas que eu testei com testes rápidos, e aí com essa duzentas com testes de quinze minutos, eu reduzi pra cinqüenta em um teste mais detalhado, depois pra doze e aí eu cheguei nas quatro principais e nas outras meninas para o elenco de apoio.

BC : A linguagem do realismo mágico conquista os festivais, de uma maneira geral, por permitir a universalização dos diferentes temas, e é muito marcante em ‘Mate-me por favor’. Como o fantástico entrou na sua vida? Quais são suas principais influencias?

Anita Rocha da Silveira: De certo modo, eu sou muito fascinada desde jovem pelo David Lynch. Eu vi ‘Veludo Azul’  por acaso, quando era muito jovem, em VHS… devia ter uns oito ou nove anos, coloquei no VHS, sem saber muito bem o que era e vi ‘Veludo Azul’ pela primeira vez com nove anos de idade. Eu gosto muito dessa criação que o David Lynch faz, criar um universo alternativo que tem semelhanças com a realidade, que parece que é a vida como ela é, mas completamente alterado, exagerado.

BC: Pessoalmente, eu senti o grande vazio e incerteza existencialista que marcam as últimas gerações. Acha que essa é a grande temática de ‘Mate-me por favor’?

Anita Rocha da Silveira: Eu não sei muito bem… Acho que não é tanto a passagem , acho que é mais essa energia de ser jovem de achar que você é invencível , de achar que você pode viver tudo em um estado extremo, que você é imortal, ou que pode morrer e renascer, que nada vai te afetar, mas de certo modo o personagem do irmão é um contraponto a isso. Mas, de certo modo, você também tem razão, que o filme também trata… São vários personagens, trata dessa problemática que é amadurecer, ser responsável, no caso do personagem do irmão, sair do sofá, e começar a se engajar com o mundo.

Com projetos para o futuro como a confecção do argumento para seu próximo longa e o desenvolvimento de uma série com amigos, Anita conquista seu espaço no cenário audiovisual. Você pode conferir ‘Mate-me por favor’ que estreou ontem (03/10) no Festival do Rio.  Ainda é possível conferir no domingo (04/10) às 13h no Cine Odeon, e segunda ( 5/10) às 14h e 19h no Kinoplex São Luiz 1.

Malu Portela

Sua vida parece ser um eterno road movie. Na estrada, descobriu seu amor pelo cinema: cursou a New York Film Academy, em 2012, no ano seguinte entrou para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro e agora está prestes a se formar em publicidade. Também escreve sobre assuntos variados em seu blog pessoal oautorretrato.blogspot.com.br Apenas espera chegar ao final dessa viagem se conhecendo um pouco melhor.
NAN