Crítica de Filme | O Clã

Bruno Giacobbo

Em seu livro mais famoso, “Eichmann em Jerusalém”, a socióloga e teórica política alemã, Hannah Arendt, discorreu sobre a maldade da seguinte forma: o mal não pode ser classificado como algo próprio da natureza humana ou de origem metafísica. Ele é político, histórico e produzido por homens comuns, em brechas institucionais. Ainda em relação a estes homens, eles, normalmente, não possuem um rosto que dê para associar, de imediato, à barbaridade que cometeram. Eles são como eu e você. Esta teoria foi batizada de “Banalidade do Mal”. Por estas razões, se fosse viva, a pensadora germânica não teria ficado nem um pouco espantada quando, em 23 de agosto de 1985, os argentinos descobriram que os Puccio, uma família de classe média igual a tantas outras, eram os autores de alguns dos crimes mais bárbaros da história recente do país. Foi neste dia que a polícia invadiu a casa da rua 25 de maio, em San Isidro, libertou a última vítima do clã, desbaratando, assim, a quadrilha de sequestradores e assassinos.

Exatos 30 depois, esta história chega aos cinemas, pelas mãos do prestigiado cineasta Pablo Trapero, com o filme O Clã. O longa-metragem mostra como o patriarca Arquímedes Puccio (Guillermo Francella) planejou e executou, com a ajuda dos filhos Alejandro (Peter Lanzani), uma estrela da Seleção Argentina de rúgbi, e Daniel (Gastón Cocchiarale); e de mais três comparsas, o sequestro de quatro pessoas que acabou resultando na morte de três delas. Os crimes, por si só, já seriam suficientemente terríveis, mas havia um agravante: as vítimas eram conhecidas da família. Quando elas foram atraídas, não podiam imaginar que seriam sequestradas. Os rostos eram de amigos, de pessoas que em tese confiavam e não o de monstros capazes das maiores barbaridades. Contudo, para que a teoria de Hannah Arendt se aplique perfeitamente aos Puccio, além deles corresponderem à descrição de quem pratica o mal, faltariam também as tais brechas institucionais. E elas de fato existiam.

O Clã Meio

Em 1985, Raul Alfonsín, o primeiro presidente civil argentino após sete anos de uma brutal ditadura militar, estava há menos de dois anos no poder. O país vivia uma crise econômica sem precedentes, a recessão era grande e os instrumentos democráticos estavam se consolidando aos poucos. Ex-colaborador dos militares, membro da Secretaria de Inteligência do Estado (SIDE), Arquímedes não pensou duas vezes antes de por em prática tudo o que aprendeu durante os anos de chumbo para ganhar dinheiro e sustentar sua família. Moralmente, nada o impedia. Ele gostava de lembrar da origem mafiosa de seu avô, na Sicília, e, naquela época, a Argentina era um paraíso para pessoas que ainda não tinham digerido bem a mudança da ordem política. Esta não aceitação é retratada em uma cena, logo no início do filme, em que o patriarca dos Puccio, emocionado, vê pela televisão um discurso do general Leopoldo Galtieri, um dos últimos presidentes do regime ditatorial, sobre a derrota na Guerra das Malvinas.

Para além de sua história, O Clã, candidato argentino ao Oscar 2016, é excelente em todos os sentidos. Trapero prova, mais uma vez, o seu talento como diretor e roteirista ao nos entregar uma trama envolvente, que abusa da violência psicológica, capaz de deixar o público inquieto e apreensivo do início ao fim. Ao não optar por uma narrativa totalmente linear, pequenos fragmentos do desfecho da saga dos Puccio foram inseridos ao longo do filme, em um excelente trabalho de montagem, ele consegue aguçar a curiosidade de quem está vendo a níveis estratosféricos. Isto sem falar da fantástica trilha sonora que pontua momentos de tranquilidade, em meio à tensão dos crimes perpetrados por aquela família aparentemente banal, liderada por um Arquímedes, que na bárbara atuação de Guillermo Francella, convence como a própria personificação do mal, ao contrário do que pregava Hannah Arendt.

Desliguem os celulares e excelente diversão.

(Filme assistido no 17º Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro).

FICHA TÉCNICA:
Direção e roteiro: Pablo Trapero.
Produção: Pedro e Agustín Almodóvar; Hugo Sigman, Esther García, Matías Mosteirín e Axel Kuschevatzky.
Elenco: Guillermo Francella, Peter Lanzani, Lili Popovich, Gastón Cocchiarale, Giselle Motta, Franco Masini, Antonia Bengoechea, Stefanía Koessl, Aníbal Barengo e Aldo Onofri.
Trilha Sonora: Vicente D´Elía.
Direção de Fotografia: Julián Apezteguía.
Figurino: Julio Suarez.
Duração: 110 minutos.
País: Argentina / Espanha.
Ano: 2015.

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN