Crítica de Filme | Capital Humano

Cristiane Passafaro Guzzi

Capital Humano, do diretor italiano Paolo Virzí (do delicado e necessário A Primeira Coisa Bela), instaura uma trama sobre a decadência social das relações humanas, a partir da livre adaptação do romance homônimo do americano Stephen Amidon. Com uma fotografia primorosa no contraste das cores e com enquadramentos milimetricamente significativos, temos o contar do enredo dividido em quatro capítulos, sendo que cada um deles conta a mesma história, mas com o ponto de vista de cada personagem sobre o mesmo tempo decorrido.

Com uma sequência inicial que estabelece o conflito a ser resolvido logo de cara: um atropelamento de um garçom numa beira de estrada e seu suposto abandono do responsável pelo ato, temos o revisitar da história de duas famílias conhecidas pela cidade e entre si. Trata-se de Dino, trabalhador no ramo de investimentos imobiliários, com sua nova esposa Roberta e sua filha Serena, bem como Giovanni Bernaschi, empresário bem sucedido no universo dos investimentos, e sua mulher Carla e filho Massimiliano. As histórias se entrelaçam a partir do momento que os filhos de ambos os casais estão terminando um relacionamento, mas se veem envolvidos no suposto acidente. Para completar o emaranhado, Dino coloca a casa que está no nome da filha Serena como garantia de um grande investimento no fundo de Giovanni, mas, previsivelmente, as ações caem e o agente imobiliário perde o que investiu, sobrando apenas 70 mil e a constatação de um “investimento humano e monetário” de um lado só, pois Giovanni não dá a mínima para o “frouxo laço” existente entre eles, muito menos para o dinheiro perdido.

Gy6JI0pDBS7iw60ElR14RJ-4_Uma atuação digna de atenção, por seu olhar desorientado, sofrido e um peso arrastado e perdido ao se conduzir e ser conduzida como uma verdadeira barganha de troca, temos na figura da mulher Carla (a atriz Valeria Bruni Tedeschi) um prenúncio do desajuste social que o filme aborda como um dos possíveis temas. Uma ex-atriz frustrada que abandonou a carreira, seus sonhos e desejos para atuar ao lado de uma família supostamente perfeita em sua superfície. Do marido preconceituoso nos dizeres, no trato com a família e no ato bruto constante, simbologia da pior representação do capitalismo que sobe na cabeça dos poderosos, verificamos a troca contínua de favores que vem caracterizando toda e qualquer relação de convivência, conveniência e poder. O trocadilho, aliás, presente no título e no romance que inspirou a história, estrutura e percorre grandiosamente a metáfora dorsal da estrutura narrativa: a troca efetiva de investimento humano que vem sendo a moeda da vez. Barganha, chantagem, interesses pessoais, privados, viram a moeda de câmbio quando se trata de salvar a pele, seja do verdadeiro responsável pelo acidente, seja para não perder o investimento no fundo de Bernaschi.

Com roteiro coeso e coerente nas explorações e analogias com os jargões dos investidores e atuações típicas do papel que cabe a cada personagem e sua complexificação necessária, temos um filme atual e crítico sobre a decadência moral, social e atemporal de qualquer país, qualquer família ou qualquer ação que estejam em jogo quando o assunto é dinheiro, poder e interesse. O epílogo, aliás, que encerra o filme, com termos jurídicos que descrevem o âmbito do capital “humano”, torna-se, na verdade, a grande epígrafe que cerceia toda e qualquer relação humana da contemporaneidade. Com mão acertada no ritmo e na condução estrutural dividida desse revisitar de um mesmo episódio, Paolo Virzí, mais uma vez, nos entrega um bom mapeamento artístico e não menos crítico da realidade que perpassa analogamente nossas sociedades.

FICHA TÉCNICA

Gênero: Drama
Direção: Paolo Virzì
Roteiro: Francesco Bruni, Francesco Piccolo, Paolo Virzì
Elenco: Bebo Storti, Fabrizio Bentivoglio, Fabrizio Gifuni, Gianluca Di Lauro, Gigio Alberti, Giovanni Anzaldo, Guglielmo Pinelli, Luigi Lo Cascio, Matilde Gioli, Michael Sart, Paolo Pierobon, Silvia Cohen, Valeria Bruni Tedeschi, Valeria Golino
Produção: Benedetto Habib, Marco Cohen
Fotografia: Jérôme Alméras, Simon Beaufils
Montador: Cecilia Zanuso

Cristiane Passafaro Guzzi

É Doutora, em Estudos Literários, pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - Campus Araraquara. Realizou Estágio de Doutorado Sanduíche, em Los Angeles, na Universidade da Califórnia (UCLA). Tem experiência na área de Teoria Literária e Relações Intersemióticas, atuando, principalmente, com os seguintes temas: teoria da literatura, semiótica, cinema, literatura contemporânea, adaptação televisiva e cinematográfica, estudos sobre roteiro. Cinéfila por natureza, leitora por convicção e série addicted. Aficionada pela filmografia da atriz Jessica Lange e sua atuação como fotógrafa. Também é pesquisadora do LABRFF (Los Angeles Brazilian Film Festival - Los Angeles).
NAN