Crítica de Filme | As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto
Bruno Giacobbo
A obra “As Mil e Uma Noites”, clássico da literatura árabe e mundial, com todos os seus personagens extraordinários e histórias fantásticas, povoa a imaginação do diretor português Miguel Gomes desde os 12 anos. Muito tempo depois, ao decidir realizar um filme sobre a crise econômica que assolou Portugal entre agosto de 2013 e julho de 2014, o cineasta chegou à conclusão de que somente Xerazade, a rainha-narradora do livro, seria capaz de dar voz aos causos que tinha em mente. Apesar de serem inspirados em fatos reais, estes possuíam os elementos essenciais a uma boa trama fantasiosa. No final das contas, Gomes tinha tanto material de qualidade em mãos, que o longa-metragem acabou se transformando em uma divertida, sarcástica e reflexiva trilogia involuntária, que critica o que ele chama, o tempo todo, de ‘governo de austeridade econômica, mas esquecido do sentido de justiça social’ e, por vezes, o próprio povo português.
Batizada de As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto, a primeira parte desta trilogia é, inicialmente, um documentário. Com o país passando por um período de recessão, os trabalhadores dos estaleiros de Viana do Castelo estão sendo demitidos. Os fatos, expostos de forma clara, comovem. Milhares de famílias dependem daqueles postos de trabalho. Paralelamente, o público toma conhecimento de uma segunda história. Homens e mulheres que ganham a vida com a apicultura (criação de abelhas para, entre outras coisas, produção de mel), também, estão com seus empregos ameaçados. Enxames inteiros estão sendo mortos por vespas que migraram da África. Em um esforço conjunto, bombeiros e um especialista tentam salvar as abelhas destruindo os vespeiros. Entremeado a estes dois relatos, Gomes aparece na tela como um cineasta vivendo uma crise criativa.
Estas passagens verídicas servem para que os espectadores não portugueses tenham um pouco de noção do que foi a crise naquele período. Assim, Xerazade, interpretada pela bela e carismática Crista Alfaiate, pode dar início às histórias que entreterão, tanto o rei Schariar, como a plateia. A primeira, intitulada “Os Homens de Pau Feito”, mostra uma pequena e pobre nação. Endividada, ela pegou um empréstimo com três mercadores e agora é obrigada a negociar uma alta taxa de juros. A reunião entre os representantes do governo e os mercadores; mais uma situação que acontece posteriormente, são engraçadíssimas. Olho vivo no tradutor (Carloto Cotta). Em uma referência direta, o país em questão é Portugal e os mercadores são a Troika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Européia), grupo que negociou o financiamento da dívida lusitana
O segundo conto, chamado de “A História do Galo e do Fogo”, tem como cenário a pequena cidade de Resende. Em um passado distante, esteve por lá um imperador chinês que amaldiçoou o lugar, desejando que ardesse em fogo para que ninguém mais pusesse os olhos lá. No presente, um galo incomoda a vizinhança por cantar antes da hora e acordar as pessoas mais cedo. Interrogado por um juiz, o único homem da região capaz de entender o que ele fala, o animal diz que o motivo da cantoria precoce é prevenir a população em relação a uma tragédia, possivelmente, fruto da antiga maldição. A questão aqui é um alerta: muitas tragédias, crises institucionais ou financeiras, poderiam ser evitadas com um simples olhar para trás. Elas não ocorrem de uma hora para outra. Na maioria das vezes, um acontecimento deste porte é consequência de algumas escolhas erradas ao longo dos anos e o galo representa a consciência desta situação.
Último conto do volume um, “O Banho dos Magníficos” é um misto de ficção com documentário. Luis (Adriano Luz) passa todo o episódio preocupado se irá chover no dia 1º de janeiro de 2014. Ele é o organizador de um banho de descarrego, em uma praia qualquer, para afastar o mau olhado e atrair vibrações positivas para o ano que está prestes a começar. Enquanto preparam este evento, ele e uma amiga, Maria (Crista Alfaiate), recebem, em casa, desempregados. Não são atores. São pessoas com dramas autênticos, contando suas histórias e como acabaram neste estado de completa penúria. Aqui, não há lição e nem é possível rir de coisa alguma. Gomes encerra As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto com um olhar de ternura para seu povo. Xerazade diria: “Escuta, ó, venturoso rei. Fui sabedora de que, num triste país entre os países…”
Desliguem os celulares e ótima diversão.
Leia também:
As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado
As Mil e Uma Noites: Volume 3, O Encantado
FICHA TÉCNICA:
Direção: Miguel Gomes.
Roteiro: Telmo Churro, Miguel Gomes e Mariana Ricardo.
Produção: Sandro Aguilar, Luís Urbano e Thomas Ordonneau.
Elenco: Crista Alfaiate, Miguel Gomes, Carloto Cotta, Adriano Luz, Rogério Samora, Luísa Cruz, Diogo Dória, Dinarte Branco, Maria Rueff, Chico Chapas, Cristina Carvalhal, Basirou Diallo, Feiticeiro, Tiago Fagulha e Américo Silva.
Direção de Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom e Mário Castanheira.
Montagem: Telmo Churro, Miguel Gomes e Pedro Filipe Marques.
Direção de Arte: Artur Pinheiro.
Duração: 125 minutos.
País: Portugal.
Ano: 2015.