Entrevista | Rafael Saar, diretor e roteirista do documentário ‘Yorimatã’
Larissa Bello
O diretor e roteirista de cinema Rafael Saar lançou um documentário sobre a história das cantoras Luhli e Lucina, que apareceram para o grande público no VII Festival Internacional da Canção, em 1972, na Rede Globo, com a música “Flor lilás. Com mais de 800 músicas compostas em parceria, quem mais gravou a dupla foi Ney Matogrosso. É delas Fala, Bandoleiro, Coração Aprisionado, Êta Nóis, Bandoleiro, Bugre, Me Rói, Pedra de Rio e O Vira, entre tantos outros sucessos na voz do intérprete.
Em seu primeiro longa-metragem “Yorimatã” (2014), um documentário que fala sobre amor livre e da geração dos anos 1970, ele conta a história das compositoras e cantoras Luhli e Lucina, referências do movimento hippie nos anos 70. O filme, exibido em outubro deste ano no Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual For Rainbow – um dos mais importantes espaços de debate e difusão do respeito à pluralidade sexual e de gênero no Brasil, por onde passa tem sido muito bem recebido.
O jovem diretor, conhecido por trabalhar com personagens da música popular brasileira, dirigiu curtas-metragens com a participação do Ney Matogrosso: “Homens-aves” (2010) e “Depois de tudo” (2008), premiado Melhor Ator para Nildo Parente no Festival de Cinema de Brasília e Melhor Filme Estrangeiro no UNCIPAR , entre mais de 10 prêmios. Participou ainda como assistente de direção no longa também sobre o Ney Matogrosso “Olho nu”, documentário de Joel Pizzini. Todos os curtas podem ser assistidos no Porta Curtas.
::: Confira a Entrevista
BC: Antes de mais nada, Rafael, gostaria de parabeniza-lo pelo valor artístico, cultural e comportamental da temática do seu filme. Gostaria que você nos contasse como surgiu a ideia de fazer um filme sobre a Luli e Lucina? Sei que você está sempre engajado em temáticas que envolvam a história da música brasileira, mas você já conhecia a história musical das duas?
RS: Obrigado Larissa! O primeiro longa-metragem em que trabalhei foi “Olho Nu”, filme dirigido pelo Joel Pizzini sobre o Ney Matogrosso em que fiz a pesquisa e fui assistente de direção. No processo do trabalho que foi intenso e longo foi inevitável que eu conhecesse a obra de Luhli e Lucina cantada por Ney e me interessasse em saber quem eram aquelas mulheres presentes nos créditos de tantos LPs e que eu não conhecia. Ao conhecer pessoalmente Luhli, e em seguida Lucina, o impacto foi imediato, musical e pelas figuras fortíssimas. Fiz uma oficina de composição com Luhli, filmamos as duas para o “Olho Nu”, e Lucina trouxe para mim os super 8mm filmados pelo Luiz Fernando, companheiro delas, imagens que elas nunca haviam assistido. Eram imagens delas ensaiando, com as crianças em Filgueiras, imagens de um show, todas belíssimas e que trouxeram a certeza de que deveríamos fazer um filme. Só depois disso fui descobrir a história da dupla e mergulhar na pesquisa deste novo filme.
BC: Como se deu o processo de construção do roteiro? Que também é você quem assina.
RS: Fiz um primeiro roteiro com a ajuda de Luhli e Lucina, pensando nos núcleos temáticos, personagens, músicas e imagens de arquivo que deveríamos buscar. Claro que ao longo de 5 anos muita coisa mudou – começamos em 2009 este processo e o filme ficou pronto em 2014. Nas filmagens e na montagem o filme foi se revelando.
BC: As imagens de arquivo pessoal das duas cantoras compõem, em grande parte, as cenas contidas no filme. Você acha que sem essas imagens o filme seria possível? Caso sim, como você pensa que poderia ser essa estrutura narrativa?
RS: O filme é composto em sua maior parte de imagens de arquivo. A ideia inicial veio a partir dos super 8mm filmados pelo Luiz e são fundamentais na estrutura. Em seguida encontramos outras imagens como “Mangaratiba por exemplo”, um filme em 16mm de Florence Jammot, que Luiz fotografou e que foi feito na linha do trem em Filgueiras, e as fotografias que estão animadas pelo Daniel Sake, e que são baseadas em negativos, contatos e sequencias fotográficas, e também áudios em fitas magnéticas, tudo registrado por ele. Dessa forma assumimos o Luiz como um personagem-olhar, quase invisível, mas presente em todo o filme. Buscamos em nossas filmagens pensar como ele filmaria aquilo e produzimos imagens em diversas texturas que embrenhadas no meio das tantas outras parecem e fazem parte do todo. Também preciso destacar a campanha virtual que fizemos e que foi fundamental para que conseguíssemos inúmeras fotografias, fitas VHS, fitas k7 e outros registros independentes feitos por amigos e fãs, como Ricardo Simões que filmou o lançamento da dupla no MASP em São Paulo e shows no fim dos anos 70. Pensar em um filme sem essas imagens, é pensar em outro filme.
BC: A história de Luhli e Lucina é revolucionária por diversos motivos. Ainda hoje alguns desses temas estão bastante pertinentes, como a questão de igualdade de direitos e de espaço para as mulheres. Você acha que a abordagem da figura feminina no cinema, de uma forma geral, seja em documentários ou em ficção, ainda é muito escassa?
RS: O filme traz uma perspectiva que muitas pessoas compartilham de que estamos num período mais careta do que o retratado. Pensar que o conceito de família, drogas, sexo, feminino, o respeito à natureza, a espiritualidade e a própria postura artística livre das regras impostas pelo mercado, todas as questões ainda são tratadas como tabu e são transgressoras ainda hoje, tudo isso nos deixa de certa forma saudosista por uma história que não vivemos. Eu que não sou mulher, não sou umbandista, não sou músico, me coloco numa posição muito externa aos universos abordados, mas que o processo do filme transformou e fez com que me engajasse e me tornasse um pouco de todos esses aspectos. Por isso talvez eu ouça tanto que o filme é muito delicado e feminino. Talvez falte não só no cinema, mas na vida, que a gente deixe nosso ego um pouco de lado e tentemos ser por um momento o outro, que o homem tente ser mulher, o branco tente ser negro, o engenheiro tente ser músico, e compreenda assim parte de suas dores e prazeres.
BC: Você tem no curriculum a direção de vários de curtas-metragens, sendo que este é o seu primeiro longa, e se trata de um documentário. Você tem interesse em fazer um longa de ficção? Já tem engatilhado algum novo projeto?
RS: Tenho alguns projetos de documentários musicais, por exemplo com a Baby do Brasil, com quem venho filmando desde 2008, e um novo com Maria Alcina que está para sair do papel. Também filmei este ano o “Peixe”, um filme híbrido com o artista Luis Capucho, e que talvez aponte para o trabalho que eu pretendo desenvolver, mais ficcional sem deixar de ser documental. “Peixe” deve ser o próximo filme a ficar pronto.