CRÍTICA | ‘O Silêncio do Céu’ é terapia para quem tem fobia de cinema brasileiro
Bruno Giacobbo
A primeira tomada é de um céu. Azul cristalino decorado com nuvens brancas, fofas feito algodão. Inicialmente, parece clichê devido ao nome do filme, mas este, logo, é descartado. Do alto para baixo, a câmera penetra pelo interior de uma casa. Dentro dela, uma mulher é violentada sexualmente. Ela resiste até onde suas forças aguentam. Grita. Cala. Sucumbe quando não dá mais. Do lado de fora, um homem chega e percebe, pelos barulhos e gritos, o que está acontecendo. A confirmação vem por uma olhada, de soslaio, pela janela. Ele respira fundo enquanto decide o que fazer. Mais do que isto: como fazer. Contudo, o tempo joga contra. No que resolve entrar, e o faz, os agressores saem. O descarte do clichê não acontece só pela simples oposição entre a paz do take incial e o furor da cena seguinte, mas, também, pela acertadíssima decisão do cineasta Marco Dutra em mostrar tudo através de dois pontos de vista: o da esposa e o do marido. Nunca simultaneamente.
Por diversos motivos, O Silêncio do Céu (Era El Cielo) não é um longa-metragem simples. Esta decisão inicial do seu realizador é a primeira de uma série que mostrará todo o seu domínio sobre os elementos fílmicos, porém, há, ainda, a história que a obra conta. A cena do estupro serve de ponto de partida. Ela é a responsável pelo silêncio tenso e enlouquecedor que surge entre Diana (Carolina Dieckmann) e Mário (Leonardo Sbaraglia), os protagonistas. Diferentemente da maioria das mulheres, ela não externa sua dor com palavras. Não registra um boletim de ocorrência, não procura um hospital e não conta para o marido o que aconteceu. Ele igualmente não revela que já sabe de tudo. Ao invés disto, resolve tentar fazer com que ela fale por meio de subterfúgios e indiretas. Falta-lhe coragem para falar com franqueza e esta tem a ver com suas inúmeras fobias: de avião, de altura, de crocodilo e tudo mais o que vier a mente do público. E o filme poderia muito bem se resumir a esta dramática ausência de vocábulos entre os dois, contudo, há uma virada.
Roteirista de televisão e cinema, Mário vai buscar na arte, que faz com tanto esmero, a arma necessária para enfrentar esta situação de frente. Em um exercício de metalinguagem, cria um personagem. É disto que ele precisa: entrar na pele de alguém corajoso. Tanto para resolver o impasse com a esposa, sob pena de terminar o seu casamento, justo agora que eles se reconciliaram após uma separação de dois anos; como para ir atrás dos criminosos. E é aí que ocorre a tal virada. O drama vai, aos poucos, se transformando em um suspense policial com traços “hitchcockianos”. Os agressores sexuais foram vistos de frente. Ninguém que passe por um trauma destes (e o trauma não acomete somente o agredido, como uma doença silenciosa, ele se alastra para todos os lados) consegue esquecer um rosto, logo, encontrá-los e reconhecê-los é só uma questão de tempo; e Montevidéu, cidade onde tudo ocorre, nem é tão grande assim para alguém se esconder quando não sabe que está sendo procurado.
Os dois primeiros filmes de Dutra são feitos essencialmente de roteiro e interpretações. Aqui, como já percebemos, há um texto rico, repleto de camadas, escrito por Sérgio Bizzio (autor do romance que foi roteirizado), Lucia Puenzo e Caetano Gotardo; e personagens que são o sonho de qualquer ator. Sbaraglia talvez seja o principal destaque ao interpretar praticamente dois tipos diferentes. No entanto, é impossível ignorar as atuações de Dieckman, a melhor da sua carreira, e de Chino Darín (filho do Ricardo). Ela dá um novo significado ao ato de sofrer calado. Está doída, porém arranja força, na maior parte das vezes, para não demonstrar nada. A carapaça só desmorona na presença dele, Nestor, o violador que não exala uma aura de maldade. Em um otimo exercício de composição de personagem, Chino encarna um portador, possivelmente, de alguma variação de autismo, dono de um vocabulário limitado e gestos bruscos. Ele parece inofensivo, na dele, porém, a realidade é outra.
Um dos elementos fílmicos muito bem utilizados pelo diretor e sua equipe é o som. Em uma cena fantástica, quando Diana e Nestor ficam frente à frente, separados unicamente por uma vidraça, o barulho do ronco do motor de uma caminhonete sobe gradativamente, funcionando como eficiente elemento catalisador e amplificador da crescente tensão existente entre eles. E se o som direto serve para esquentar ainda mais a película, a trilha sonora de Guilherme e Gustavo Garbato está ali para nos lembrar que, em meio ao furor, a raiva e a frustração do dia a dia, é possível ter breves instantes de ternura. Destaque para “Corcovado”, linda canção de Tom Jobim, tocada no rádio de um carro e cantada, bem baixinha, pelos protagonistas enquanto estes estão sentados na cama que fica dentro do mesmo quarto em que ela foi violentada. Um contraste, sem dúvida alguma, bastante interessante.
O Silêncio do Céu é somente o terceiro longa-metragem de Marco Dutra. Os anteriores foram “Trabalhar Cansa” (2011) e “Quando Eu Era Vivo” (2014). Ele ainda tem uma longa carreira pela frente, mas até aqui sua regularidade é impressionante. Todos os três são muito bons, contudo, este último, com certeza, é o melhor de todos por ser o mais completo e redondo cinematograficamente. Não há um único elemento abaixo da média: direção, roteiro, interpretações, som, trilha sonora e fotografia, embora não a tenha citado especificamente nos parágrafos acima, são maravilhosos. Desta forma, mesmo que pareça um arroubo apaixonado por parte deste crítico, não tenho problema algum em afirmar que, pelo menos por enquanto, este é o melhor filme de 2016, obra indicada como terapia para quem tem fobia de cinema brasileiro.
Desliguem os celulares e excepcional diversão.
TRAILER:
FICHA TÉCNICA:
Título original: Era el cielo
Direção: Marco Dutra
Roteiro: Lucía Puenzo, Sergio Bizzio, Caetano Gotardo
Elenco: Leonardo Sbaraglia, Carolina Dieckmann, Chino Darín
Distribuição: Vitrine Filmes
País: Brasil / Chile
Gênero: drama
Ano de produção: 2016
Duração: 102 minutos
Classificação: 16 anos