‘O Som ao Redor’ | CRÍTICA

Pedro Esteves

“O único lugar em que o passado pode viver é o presente”. A frase de Giorgio Agamben expande um conceito de Santo Agostinho. Então, se me perguntassem qual é a história de O Som ao Redor, filme dirigido e roteirizado por Kleber Mendonça, que ainda divide a edição e a sonorização, a primeira frase que diria seria a de Agamben.

Tanto do ponto de vista da trama, como dos diálogos que a forma do filme faz com a história do Cinema. Contudo, seria ainda pouco para definir a obra em questão. Responderia eu, então, ainda: é o passado, a casa grande e senzala, vivido no presente, desvelado em sua luta de classes em nossa vida brasileira cotidiana.

Talvez seja essa a melhor afirmação para o que o filme retrata, mas como toda obra de arte, qualquer tentativa de aprisioná-la em definições estanques, não dá conta de toda a sua magnitude. Sim, é O Som ao Redor uma obra de arte (opinião também de Jytte Jensen, curador de filmes do MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York, que adquiriu uma cópia para o museu), é, pois, um filme.

Leia mais:

BÔNUS | JOJO RABBIT É O MELHOR FILME DO OSCAR
O TEMPO PASSA! RELEMBRE 11 GRANDES FILMES QUE COMPLETAM 10 ANOS!
‘1917’ | CRÍTICA

crítica de O Som ao Redor

Casa Grande e Senzala x Deus e o Diabo na Terra do Sol

As primeiras imagens nos remetem ao passado, retratando “Casa Grande e Senzala”, livro de Gilberto Freyre (1900-1987), que o diretor mesmo confessa ter lido quando criança e relido antes de fazer o filme. Vemos imagens de um sertão pobre e dominado por senhores de engenho, dialogando também com “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (Glauber Rocha, 1964), mas que é transfigurado para a Recife atual.

A entrada em Recife contemporânea, acompanhada por uma “música” repetitiva, pontual, potente e angustiante (que se faz presente em todo o filme), é a prisão, tanto das personagens, como do espectador, demonstrada pela câmera que, outrora apresentava a busca pela liberdade (“Os Incompreendidos”, de Truffaut, 1959 e “O Deus e o Diabo na Terra do Sol”, por exemplo), persegue uma menina a andar de patins a esmo, presa em um edifício murado e gradeado.

No campo de futebol, crianças se amontoam em diversas brincadeiras, junto a suas babás, enquanto que outras observam, pela grade do prédio, um trabalhador colocar uma nova grade em um prédio vizinho.

 

Prisioneiros do universo da classe média de Recife, mas que poderia ser a classe média de qualquer lugar do mundo, vazia e sem propósito, e de suas relações patronais, típicas do Brasil, vivendo, essa classe, aprisionada em seus condomínios, que servem para protegê-la de um inimigo, que se configura muito mais como paranoia do que como verdade.

Elite enjaulada

Presa, então, pelo medo, a elite se enjaula, coloca câmeras e contrata seguranças para a rua, que servem, na prática, para ajudar um transeunte perdido e espantar o “perigoso” “menino-aranha”, lenda urbana real de Recife, muito depois de ele já ter entrado em diversos prédios. A segurança, no entanto, parece ser sempre menor que o medo.

Talvez, porque não possa a elite fugir do som ao redor que invade, por cada janela e brecha aberta, seu universo de portas trancadas e de grades, denunciando a vida da qual ela se esconde. Para “ao redor”, ela não olha e não repara, ela não quer ver o que se encontra além de seus muros. O mar, no fim da rua, símbolo de liberdade, tão forte nos dois filmes citados anteriormente, é invisível, está além dos muros, é, pois, local de medo e terror onde vivem tubarões.

 
O Som ao Redor crítica

A prisão, seja física, na falta de perspectiva de vida, ou temporal, no passado que resiste em ficar dentro de cada personagem, se dá em cada situação do filme, em cada plano em que o enquadramento, o som e o tempo impregnam o espectador.

Trabalho minimalista dos intérpretes

O trabalho minimalista dos intérpretes em O Som ao Redor revela o mesmo aprisionamento dos desejos, da expressão, da vida de cada um. Tudo ligando magistralmente a forma e o conteúdo, produzindo uma fotogenia, que podemos entender representada no grande plano do rosto de Bia (Maeve Jinkings).

A dona de casa, esta mesma Bia, desprovida de propósito, que vive presa em sua própria casa, cuja única preocupação é conseguir que o cão de guarda do vizinho pare de latir, tem uma relação inócua com seu marido e busca preencher sua vida com drogas e prazeres sexuais com a máquina de lavar.

 
 

O especulador imobiliário, senhor de engenho, Francisco (W.J. Solha), segundo ele afirma, mora em Recife. Entretanto, seu negócio mesmo é na fazenda, já decadente, símbolo de seu poder senhorial do passado. Seu neto, João (Gustavo Jahn), detesta o trabalho que tem, possui questões com a história de sua família e se apaixona por Sofia (Irma Brow), a única personagem que está além dos domínios senhoriais do avô de João. Todos que habitam a rua estão sobe o jugo desse senhor de engenho. Domínios que o próprio João já deixou ao morar no exterior, mas que, no fim, não consegue abandonar.

Leia mais:

‘COM AMOR, VAN GOGH: O SONHO IMPOSSÍVEL’ | CRÍTICA
‘OS MISERÁVEIS’ (2019) | CRÍTICA
‘O DESPERTAR DAS FORMIGAS’ | CRÍTICA

Sofia, inclusive, não deixa de estar presa a um passado, que a liga à família de Francisco e quase que onipresencia a história desta com a de todos. O encontro com o passado faz Sofia presentificá-lo (inclusive com uma linda cena homenageando o cinema) e acaba por tornar este reencontro o seu maior interesse.

Contudo, diferente dos demais, ela some do presente deixando o passado. Pois, como coloca João para seu primo, ela tinha outra história. Quem sabe seja a única personagem que transcende o passado no presente para personificar o futuro neste. A outra história?

O Som ao Redor

Os seguranças que lá estão, personificando a privatização do público, oriundo dos tempos coloniais, surgem como fantasmas do passado, presos a este, para ajustar contas no presente, subvertendo a ordem opressora histórica, como que concretizando um desejo apresentado no pós-crédito de “Quanto Vale ou é Por quilo” (de Sergio Bianchi, 2005).

Maior prisão que estas, no entanto, é aquela velada no cotidiano de nossa sociedade. Advinda, novamente, da “Casa Grande e Senzala”, a prisão na qual o proletariado se encontra perante a elite, que a trata como serviçal.

Filme fotogênico

Relação que não se esvai nem em João, que por mais carinhoso que seja com seus empregados, não se importa verdadeiramente com eles (como se vê na cena da reunião de condomínio, que ele abandona no meio, para ir ao encontro da namorada, apesar da gravidade do tema discutido: a demissão do porteiro, cuja ele se bota como contra).

No entanto, são estes mesmos serviçais que compartilham o cotidiano da elite, sabem da vida dela, a vigia por câmeras. São eles, então, os cães de guarda que, no entanto, podem derrubá-la.

Somos aprisionados, de forma contundente, pelo ritmo do filme, que nos algema a um acontecimento futuro carregado de passado, que jamais chega. Como se o longa também tivesse medo de acontecer, em ver o acontecido.

Nosso fôlego é tomado em cada devir que não vem, presentificado por algo maior que só se revela pela forma fílmica, configurando o filme num todo fotogênico. Por fim, se temos respostas, não temos um desfecho propriamente dito. Isso porque ficamos na “fotogenia” de que algo ainda maior irá acontecer e não só em O Som ao Redor.

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Direção: Kleber Mendonça Filho

Elenco: Irandhir Santos, Gustavo Jahn, Maeve Jinkings, WJ Solha, Irma Brown, Lula Terra, Albert Tenorio, Nivaldo Nascimento, Yuri Holanda, Clebia Souza

Roteiro: Kleber Mendonça Filho

Gênero: Ficção

Duração: 131 min

Pedro Esteves

Cineasta, fotógrafo, pedagogo e enoconsultor. É curioso por natureza, chato por opção e otimista por realismo. Midiaeducador no ensino formal, expõe seus trabalhos artísticos em facebook.com/estevesarte e presta consultoria em vinhos a partir de www.primusvinho.com.br .
NAN