CRÍTICA | ‘A Lei da Noite’ já nasceu cult

Bruno Giacobbo

Como começar a escrever sobre um dos maiores mistérios do cinema recente? A partir do começo, diria algum engraçadinho. Sim, porém, a questão não é bem esta. O problema, na verdade, é como ir contra tudo e contra todos, como dizer que você gostou (bastante, para ser sincero) de um filme que era a principal aposta da Warner para o Oscar, mas que o mundo inteiro, críticos e púbico em geral, crucificou? Não tenho certeza. Contudo, como não existem  tantas formas diferentes de levar a cabo esta missão, vou proferir uma sentença: A Lei da Noite (Live by Night), dirigido e estrelado por Ben Affleck, é o primeiro cult de 2017 e por cult, vamos combinar, é aquele longa muito criticado na época de seu lançamento, mas que com o passar do tempo vai conquistando uma grande legião de fãs e adeptos mundo afora. Podem confiar, pois este é o status que o futuro reserva a esta super produção que tem tudo o que se imagina em uma obra sobre a máfia: um protagonista que não deseja ser bandido a vida toda, amigos leais, inimigos mortais, mulheres fatais e muitas rajadas de balas.

Baseada em um romance de Dennis Lehane, escritor que já serviu de matéria prima para ótimas películas como “Sobre Meninos e Lobos” (2003) e “Medo da Verdade” (2007), a história acompanha a vertiginosa ascensão do jovem Joe Coughlin (Ben Affleck) pelo submundo do crime organizado de Boston. Filho de Thomas Coughlin (Brendan Gleeson), comissário da polícia local, ele é um audacioso ladrão, capaz até mesmo de assaltar, com a ajuda dos irmãos Dion e Paolo Bartolo (Chris Messina e BC Halifax), a banca de jogos de azar do poderoso gangster Albert White (Robert Glenister), chefe da máfia irlandesa na cidade. Só que esta mistura de audácia e petulância vai além da vida criminosa de Joe, uma vez que este tem um caso com Emma Gould (Sienna Miller), a namorada favorita do chefão irlandês. Tal informação, claro, só poderia trazer complicações. Nas mãos de Don Maso Pescatore (Remo Girone), rival de White, ela é instrumento de barganha e chantagem. Em troca do seu silêncio, o capo italiano pede que o assaltante mate o inimigo. E aí é óbvio que alguém tão petulante não se dobraria facilmente.

Os desdobramentos seguintes conduzirão a trama e a sua ação das ruas asfaltadas de Boston às vielas empoeiradas de Tampa. De Massachusetts à Flórida, o ladrão se torna, aos poucos,  alguém importante. Um rico traficante de álcool em plena “Lei Seca”. Outros personagens são adicionados. Um novo grande amor, a cubana Graciela (Zoe Saldaña), e novos inimigos, o delegado Irving Figgis (Chris Cooper), sua filha Loreta (Elle Fanning) e RD Pruitt (Matthew Maher), um raivoso membro da Ku Klux Klaan. Este entra e sai de personagens (que, no fim, não é tão intenso assim) poderia indicar certa falta de continuidade com uma transição abrupta demais de uma história para outra, logo, um problema no roteiro adaptado pelo próprio diretor. Mas não é isto o que acontece. Eu já li o livro no qual o texto se baseia e posso dizer que ele é rico em detalhes. Deste jeito, transpor absolutamente tudo para a telona seria um trabalho hercúleo, que geraria um filme com mais de três horas de duração. E, por incrível que pareça, é possível que isto tenha ocorrido antes da edição final, em formato episódico, que chegou aos cinemas do mundo inteiro.

Se sem querer a edição conferiu a impressão errônea de falta de continuidade e abruptalidade ao que assistimos, por outro lado, ela se revela fantástica ao tornar a história compreensível para todos. O crítico cinematográfico tem a obrigação de analisar um filme enquanto filme. Não importa se este é uma adaptação fiel ou não a obra original. O que importa é que faça sentido para um amplo espectro de espectadores. E aqui, com certeza, faz. Mesmo tendo consciência do que acabei de escrever, assisti ao longa fazendo uma comparação mental. Algumas cenas são idênticas às passagens correspondentes do romance de Lehane, já alguns personagens como Danny Coughlin (Scott Eastwood), por exemplo, creditados no site IMDB, não dão as caras o filme todo. E nada disto é um problema. Como disse anteriormente, a história faz sentido para fãs e público comum. O mérito total em relação a esta edição perfeita é de um colaborador rotineiro de Ben Affleck, o montador William Goldenberg, vencedor do Oscar por “Argo”, em 2013.

Outros aspectos que chamam a atenção neste longa-metragem são a fotografia e as atuações. Em sua primeira parceria com o cineasta, o três vezes ganhador do Oscar, Robert Richardson, trouxe um pouco de sua experiência com diretores do quilate de Martin Scorsese, Quentin Tarantino e Oliver Stone. Com o primeiro rodou “Cassino”, película de temática bastante parecida, em 1995. É nítido o seu dedo na escolha dos planos abertos que valorizam a luz resplandecente das tomadas ao ar livre na Flórida. Estas e outras cenas fazem deste um filme de beleza ímpar. Em relação aos intérpretes, os destaques vão para os coadjuvantes Messina, Fanning e Saldaña. São deles os  melhores momentos e os diálogos mais inspirados, sempre em conjunto com o protagonista, que, se não brilha por parecer um pouco engessado, não compromete. Já os experientes Gleeson e Cooper também possuem ótimos instantes, apesar do pouco tempo em cena. Suas belas imagens, a química do elenco, a verborragia calculada (uma característica do roteiro que não mencionei antes) e a plasticidade das sequências de ação garantem que esta não seja mais uma obra genérica e esquecível.

Quando um longa-metragem que é a grande aposta do seu estúdio fracassa, é mais do que natural que se comece a procurar culpados. Aqui não seria diferente. No entanto, talvez esta não seja uma pergunta tão difícil assim de ser respondida. O custo da película foi alto: aproximadamente 65 milhões de dólares. E até agora, segundo a última conta, ela arrecadou apenas 21 milhões. Há quem acredite que o público não se interessa mais por filmes de máfia. Contudo, “Aliança do Crime” (2015) obteve sucesso. O baixo número de espectadores e, consequentemente, a bilheteria ruim me parecem muito mais culpa das críticas negativas do que de qualquer outra coisa. E é aí que reside o verdadeiro mistério: O que levou a crítica internacional a não gostar desta obra? Ela é melhor do que pelo menos três dos indicados ao próximo Oscar e poderia, sem nenhum medo de ser feliz, estar concorrendo em algumas categorias técnicas. Dito isto, reafirmo o que escrevi no início deste texto. A Lei da Noite já nasceu cult e a consolidação deste status é simplesmente uma questão de tempo.

Desliguem os celulares e excelente diversão.

TRAILER:

FICHA TÉCNICA:
Título original: Live by Night
Direção: Ben Affleck
Roteiro: Ben Affleck, baseado no romance de Dennis Lehane
Elenco: Ben Affleck, Elle Fanning, Brendan Gleeson, Zoe Saldana
Distribuição: Warner
Data de estreia: qui, 23/02/17
País: Estados Unidos
Gênero: policial
Ano de produção: 2016
Classificação: 14 anos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN