CRÍTICA | ‘Neve Negra’ tem um dos desfechos mais impactantes do ano

Bruno Giacobbo

Você seria capaz de guardar um segredo? De supetão, a minha resposta seria sim. Contudo, há segredos e segredos. Os que envolvem uma família são, diversas vezes, os mais cabeludos. Quem não se lembra dos Puccio, personagens do excelente thriller argentino “O Clã” (2015), estrelado por um camaleônico Guillermo Francella? Eu lembro muito bem e na época tive alguns pesadelos. Talvez tenha sido com o intuito de esquiar na popularidade desta obra, representante dos nossos vizinhos na corrida ao Oscar 2016, que os produtores de Neve Negra (Nieve Negra) tomaram a decisão de divulgar o filme com a pergunta que abre esta crítica. Antes de continuar, preciso dizer: ao sair do cinema, a convicção expressa algumas linhas acima não existia mais, desaparecera por completo.

CRÍTICA #2 | ‘Neve Negra’ envolve na tensão, mas peca na continuidade

Os Sabaté não são os Puccio. Mas, também, não são o que podemos chamar de uma família normal. Uma tragédia ocorrida há bastante tempo, a morte do caçula Juan (Ivan Luengo), vítima de um acidente nas neves da Patagônia, assombra os remanescentes do clã até hoje. Quando o pai (Andrés Herrera) morre, Marcos (Leonardo Sbaraglia), o segundo dos filhos, é obrigado a voltar para casa acompanhado da jovem esposa Laura (Laia Costa). Além das pendências de praxe, uma empresa canadense deseja comprar as terras deixadas pelo patriarca. Para ele, o dinheiro será muito bem-vindo. A questão é saber se os irmãos também aceitarão o negócio.

Única mulher entre os herdeiros, Sabrina (Dolores Fonzi) sofre de problemas de saúde e aparentemente não é um empecilho para a concretização da venda. Na verdade, quem oferece mais risco é o primogênito Salvador (Ricardo Darín). Recluso, ele vive como um ermitão em uma cabana distante de tudo. Procurado por Sépia (Federico Luppi), um velho amigo da família e intermediário da negociação, não quer considerar sequer a possibilidade. Consequentemente, caberá a Marcos a tarefa de abordar o assunto com o irmão. Só que não será nada fácil. A distância, eles não se veem há anos, e traumas antigos prometem ser obstáculos complicados de serem superados.

Escrito e dirigido por Martin Hodara, que foi assistente de direção do clássico “Nove Rainhas” (2000), o longa tem duas linhas temporais bastante claras: uma com os acontecimentos presentes; e a outra mostrando os irmãos muito jovens. E é por meio desta que somos apresentados aos fantasmas que tanto assombram a Família Sabaté. Como o cenário das duas narrativas é o mesmo, a propriedade cobiçada pelos estrangeiros e a cabana isolada do mundo, ou seja, os lugares onde Salvador, Marcos, Sabrina e Juan passaram a infância e a juventude, a transição de uma cena para a outra, ainda que distantes temporalmente, é de uma sutileza incrível. Esta particularidade, fruto da excelente edição de Alejandro Carrillo Penovi, faz com que a história flua naturalmente e envolva os espectadores.

A utilização de poucos cenários favorece, também, um outro aspecto desta película: sua teatralidade. Sim, em diversos momentos, Neve Negra lembra uma peça. Assim, seu elenco acaba sendo de grande relevância, principalmente o trio Sbaraglia, Costa e Darín. Juntos ou separados, eles estão em 80% das cenas. Estrela de “O Silêncio do Céu” (2016), Sbaraglia dá mais uma prova do seu talento ao interpretar um tipo complexo, dúbio e meio covardão. Darín, por sua vez, personifica um homem taciturno e de pouquíssimas palavras, bem diferente de papéis onde o ator teve que fazer uso de sua típica verborragia. Contudo, o grande destaque é Costa. A espanhola, vista por aqui em “Victoria” (2015), vive a personagem com o melhor arco dramático, com novas nuances a cada frame e capaz de desconcertar o público com um único olhar.

Emoldurada por uma belíssima fotografia que ajuda a criar um filme sensorial (me digam posteriormente se vocês não sentiram frio, eu senti, do mesmo jeito que fiquei cansando ao assistir “Insônia” de Christopher Nolan), a história guarda uma ótima reviravolta para o seu final. Ainda que alguns aspectos do roteiro sejam dedutíveis, meu caro Watson, esta surpresa coloca o longa do cineasta Hodara entre os de desfechos mais impactantes no ano, ao lado dos subestimados “Armas na Mesa” e “Versões de um Crime”.

Desliguem os celulares e ótima diversão.

TRAILER:

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FICHA TÉCNICA:

Título original: Nieve negra
Direção: Matin Hodara
Elenco: Ricardo Darín, Laia Costa, Dolores Fonzi
Distribuição: Paris
Data de estreia: qui, 08/06/17
País: Argentina, Espanha
Gênero: drama
Ano de produção: 2017
Duração: 90 minutos
Classificação: 12 anos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN