CRÍTICA | Com ótima produção, ‘Bingo: O Rei das Manhãs’ é o nosso “O Lobo de Wall Street”

Bruno Giacobbo

Subversivo e autêntico. Talvez estes sejam os adjetivos que melhor definam um dos filmes brasileiros mais aguardados do ano. Não por uma decisão pura e simples dos seus realizadores, mas porque o personagem em si subverte, de forma autêntica, tudo aquilo que se espera dele. Estou falando de um palhaço, mas não de um qualquer e, sim, do Bozo, que, entre 1980 e 1991, marcou a infância de toda uma geração de meninos e meninas. Enquanto alguns gostavam de ver a Xuxa, na Rede Globo, outros preferiam assistir à antiga TVS, hoje, SBT. Nela, entre um desenho animado e outro, o apresentador brincava com a criançada no palco, atendia ligações telefônicas e precisava se virar no ar para não perder o rebolado quando posto em xeque por um garoto abusado. Quem tem 30 anos ou mais, com certeza, possui lembranças claras desta época. Por força de contrato, o bufão teve que ser rebatizado e seu visual alterado. Na verdade, o protagonista de Bingo: O Rei das Manhãs se parece com o original e a mudança mais chamativa foi na cor do cabelo, onde o vermelho deu lugar ao azul.

Trabalho de estreia como cineasta do prestigiado montador Daniel Rezende (indicado ao Oscar por Cidade de Deus, 2002), o foco do filme não é o personagem criado por Alan Livingston, nos Estados Unidos, em 1946. O que interessa é Arlindo Barreto, aqui, igualmente rebatizado, Augusto Mendes (Vladimir Brichta), um dos homens que interpretaram o palhaço no Brasil. É ele que, com uma vida de excessos atrás das câmeras, em noitadas regadas a álcool e a cocaína, dita o tom subversivo da obra. Filho da atriz e vedete Marta (Ana Lucia Torre), inspirada em Márcia de Windsor, mãe de Barreto, sua carreira de ator contabilizava algumas novelas e muitas pornochanchadas, sem jamais ter conhecido o sucesso. A oportunidade de reparar esta falha veio ao ser aprovado no teste para viver Bingo. No entanto, os roteiros, meras traduções dos originais norte-americanos, eram certinhos demais. Na base da improvisação, Augusto os adaptou para a realidade das crianças brasileiras, já que, como ele fala para o gringo que está supervisionando a montagem do programa, nosso país não é para iniciantes.

No mundo moderno, palhaços são símbolos de ingenuidade e alegria. Quantas crianças tiveram uma festa de aniversário com um deles a entretê-las? Muitas. Escritores contemporâneos famosos como Stephen King e Dennis Lehane deram conotações diferentes ao personagem e o fato é que nem sempre ele teve esta imagem pela qual é conhecido modernamente. No filme, ao contar para a mãe o papel que interpretará, Augusto lembra que a origem dos palhaços remete aos bobos da corte (ou bufões) da Idade Média e que estes eram os responsáveis por dizerem as verdades que ninguém tinha coragem de dizer aos reis. De certa forma, é isto que o protagonista faz, em vários instantes, ao recusar o ostracismo ou ao não aceitar ser coadjuvante em uma grande televisão. Ao buscar seu lugar ao sol em uma concorrente menor, ao enfrentar o gringo e Lucia (Leandra Leal), a diretora do programa, para viver Bingo do seu jeito, ele está dizendo verdades que outros, em seu lugar, não teriam coragem, está sendo autêntico. O único momento em que esta autenticidade falha é no relacionamento com o filho Gabriel (Cauã Martins) e assim mesmo só quando, enfim, alcança o sucesso.

Durante a fase de divulgação do longa-metragem, em uma entrevista, Rezende disse que ao mesclar fatos reais com passagens romanceadas, o roteirista Luiz Bolognesi teve como inspiração Riggan Thomson (Michael Keaton), de “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)”, de 2014. Logo, este seria um filme de personagem. Concordo, porém, prefiro outra comparação. Guardadas as devidas proporções, Bingo: O Rei das Manhãs é o nosso “O Lobo de Wall Street” (2013), de Martin Scorsese. Há um nítido paralelo entre Arlindo Barreto e Jordan Belfort, o homem cinebiografado pela película americana. De maneiras absolutamente particulares, ambos eram geniais e buscaram incessantemente o estrelato profissional. Ao chegarem aonde queriam, os dois começaram a abusar das drogas e a negligenciar aspectos de suas vidas pessoais. Era claro que isto não poderia dar certo e o vício foi o início do fim. Ou do começo, pois, previsivelmente, uma vez que as duas histórias já foram bastante noticiadas, eles deram a volta por cima e, hoje, em púlpitos distintos, falam para quem quiser ouvir sobre suas experiências. Na reta final dos dois filmes, Barreto e Belfort aparecem em pequenas e rápidas pontinhas provando que estão muito bem obrigado.

Assim como ocorre na obra de Scorsese, Rezende não economizou na capacidade de chocar o público conservador. São muitos os momentos em que visualizamos bebidas, drogas e pessoas despidas. No entanto, duas cenas podem ser consideradas mais chocantes: uma envolvendo Augusto e a cantora e bailarina Gretchen (Emanuelle Araújo), a única a não ter o seu nome alterado; e outra onde a palavra Jesus é pronunciada, repetidamente, de forma ousada em um restaurante. A ousadia do cineasta de primeira viagem transparece, ainda, pincelada aqui e acolá. Em uma tomada que marca a primeira virada da trama, o protagonista atravessa cabisbaixo um corredor e as luzes do teto, uma a uma, vão se apagando à medida que ele passa por elas. Metaforicamente, é o adeus à ribalta e aos dias de glória. Já a segunda e última virada da história é marcada por um plano-sequência que começa dentro de um apartamento no topo de um edifício da Paulista, sobrevoa a avenida, e termina no interior de outro prédio. Uma cena feita com o valioso auxílio do diretor de fotografia Lula Carvalho e que Alejandro G. Iñarritu, realizador do supracitado “Birdman”, orgulhosamente assinaria.

Como uma ótima produção de época, Bingo: O Rei das Manhãs teve grande investimento em aspectos que convergem para a total imersão do público. Da direção de arte de Cassio Amarante à trilha sonora de Beto Villares, tudo foi cuidadosamente pensado. No início dos anos 80, o Brasil vivia o resquício da “Era das Discos”. Os inferninhos frequentados pelo protagonista e por seu amigo, o operador de câmera Vasconcellos (Augusto Madeira), parecem recém-saídos da década anterior com suas decorações cafonas e uma música que colabora para a composição da atmosfera esfumaçada típica destes lugares. A cafonice também dá o ar da graça no figurino elaborado por Veronica Julian, onde roupas bufantes e espalhafatosas se destacam. Contudo, sendo este um filme de personagem, nenhum investimento foi mais importante do que o feito na escolha do protagonista. Wagner Moura era a opção original. Entretanto, Vladimir Brichta, em uma das melhores atuações de sua vida, deu conta do recado coadjuvado por uma excelente Leandra Leal e por um saudoso Domingos Montagner, em participação especialíssima. De forma que, hoje, seria impossível pensar em outro ator para o papel.

Desliguem os celulares e excelente diversão, pois o Bingo chegou, criançada!

::: TRAILER

::: FOTOS

::: FICHA TÉCNICA

Direção: Daniel Rezende
Elenco: Vladimir Brichta, Leandra Leal, Domingos Montagner
Distribuição: Warner
Data de estreia: qui, 24/08/17
País: Brasil
Gênero: drama
Ano de produção: 2016
Classificação: 16 anos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN