Eros e Logos como metáforas em ‘A Filha do Rei’
Vinícius de Lacerda Mesquita
Na França do século XVII, um monarca absolutista reinava com mãos de ferro, muita excentricidade e apego ao narcisismo egoico: estamos falando de Luís XIV, cujo reinado foi considerado o mais duradouro em toda a história. Numa época em que a Europa vivia sob constante sombras e ameaças de guerra, viver para sempre, mais que um simbolismo, era uma questão de manutenção do poder, status quo e influências. É nesse contexto que ‘A Filha do Rei’ se insere, não como um filme biográfico, mas como uma trama de fantasia e ficção.
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O enredo
Sob a alcunha de filha bastarda, Marie-Josephe permaneceu escondida de toda a corte de Versalhes, sendo criada num convento, mas que nunca demonstrou ser uma mulher submissa aos costumes da época. Ao contrário. Seu espírito livre, conexão com o mar e exímio talento musical fizeram com que se tornasse uma deslocada. Enquanto isso, o Rei Sol planejava em segredo conquistar o dom da imortalidade. E para isso, designou marinheiros para que encontrassem o continente perdido de Atlântida, o qual, no filme, é a morada de tritões e sereias. Aliás, numa disputa entre ciência e religião, tal mistério se revela na captura de uma dessas criaturas marinhas, e somente com a sua morte, durante um ritual realizado durante o eclipse, é que realizaria tal desejo.
Das gavetas para a psicologia
A direção dessa produção ficou por conta do diretor Sean McNamara, que mesmo após mais de 100 filmes, ainda era um desconhecido em Hollywood. Inclusive, o próprio filme também, uma vez que foi gravado em 2014, porém somente agora em 2022 ganhou o mundo. É nessa complexa trama entre opostos (masculino e feminino, razão e emoção, Deus e magia) que se desenrola essa novidade em forma de audiovisual.
A simplicidade do roteiro esconde um subtexto bastante interessante que, à luz da teoria de Carl Gustav Jung, pode ser compreendida um pouco melhor. O grande psicólogo e psiquiatra do século XX dedicou boa parte do desenvolvimento de uma linha de pensamento com base na história, nos mitos e lendas que pertencem ao cânone ocidental, passando igualmente pelo oriente e pela busca do ponto de equilíbrio entre ambos os lados.
Os arquétipos Logos e Eros
Para Jung, é na mitologia de Logos e Eros que está contida a grande chave para se compreender o masculino e o feminino, não apenas em seus aspectos micro, mas, sobretudo, de maneira macrocósmica. A essa divisão, ele recorreu à língua grega para recuperar o conceito de sigizia: no princípio, de acordo com a história de criação do povos helênicos, o ser humano possuía ambos os sexos, sendo, na origem, um ser andrógino. Com o tempo, essa cisão se tornou uma divisão consciente, contudo, inconscientemente, carregamos essa contraparte, como uma forma de recorrência e de objetivo, o qual nos coloca o desafio de unir novamente as metades, literal ou metaforicamente.
Logos é o Sol, o princípio e a força original masculina, a razão, a dureza, a força, o fogo e o ar, também tido como o a busca pela perfeição. Já Eros é a Lua, sua contraparte, o aspecto feminino universal, o amor, a emoção, a paixão, a sensibilidade, a recepção, a terra e a água, ou o desejo pela totalidade.
Ambos os Arquétipos/Forças Arquetípicas, atemporais e imateriais da natureza divina e humana, permanecerão por toda a eternidade numa busca pelo polo oposto, para que novamente se unam, mas dessa vez sem se misturarem totalmente. Em outras palavras, aquilo que Jung chamou de Individuação – o destino da conciliação harmoniosa das tensões contrárias e complementares.
O simbolismo
No filme, essa disputa se torna muito clara e bastante visual: seja no contraste entre a personalidade e originalidade de Marie e a rigidez dos propósitos do Rei; na tentativa de se querer controlar a natureza feminina de um ser mágico a partir de uma visão polarizada e unilateral masculina; ou mesmo na imagem da Lua cobrindo o Sol no momento de clímax da narrativa. Todas essas imagens buscam traduzir exatamente esse confronto, essa disputa inútil entre duas polaridades que necessitam encontrar um consenso, para que ambas coexistam num mundo já assombrado pelas incoerências e paradoxos.
Enfim, é nesse clima de jornada pela alteridade que A Filha do Rei se insere como uma história simples e até certo ponto infantil. Mas cuja reflexão acerca de suas profundidades nos convida a abandonar nosso orgulho e, de fato, mergulhar na procura do destino de nossas almas. Longe de ser uma produção brilhante, é um filme honesto em sua proposta. Além disso, sabe exatamente como iniciar e finalizar a história.
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Trailer do filme A Filha do Rei
Ficha Técnica
Título Original: The King’s Daughter
Elenco: Pierce Brosnan, Kaya Scodelario e William Hurt
Direção: Sean McNamara
Gêneros: Ação, Aventura, Fantasia
Duração: 92 minutos
Ano de Produção: 2022
Classificação: 14 anos
País: Austrália