A mulher no cinema

A mulher no cinema: de produções ao mundo da crítica

Ana Rita

Vivemos em um mundo machista, governado por homens e para homens, e isso não é novidade para ninguém. Há anos mulheres lutam nessa batalha aparentemente infinita em busca apenas de direitos e oportunidades iguais.

O cinema é um recorte desse mundo onde a mulher fica de canto, seja na parte de produção ou na crítica. Existem sim mulheres críticas incríveis por aí (e que sabem mais que muitos homens ‘especialistas’). Entretanto, por mais que estas se esforcem e saibam muito sobre cinema, nesse mundo de homens, seu reconhecimento não é como deveria.

Cadê as mulheres falando de cinema?

Quando estudamos mais a fundo sobre cinema, temos como ‘bíblia’ os textos de Bazin, Ismail Xavier, Truffaut, Rohmer e muitos outros gênios para o cinema. Mas, dentre esses nomes, raramente vemos o reconhecimento merecido das mulheres como: Pauline Kael, Elizabeth Ann Kaplan, Laura Mulvey, Mary Ann Doane.

No Brasil, isso parece ser mais intenso. Vivenciando esse mundo da crítica, fazendo amizades e contatos, percebo que em torno de 80% da crítica em nosso país é feita por homens. Há sites conceituados sem mulheres em sua equipe, ou no mínimo uma ou duas. Já não bastassem filmes sempre produzidos por homens, a crítica também é um espaço de muita luta pelas mulheres.

Por que não houve grandes mulheres artistas?

Antes de estudar sobre cinema e escrever sobre esse assunto, eu sempre fui apaixonada por História da Arte e seus estudos de Teoria. E toda essa questão da mulher no cinema (que é uma arte), e isso inclui a área da crítica, lembra-me o indispensável texto “Por que não houve grandes mulheres artistas?”, da Linda Nochlin, no qual a historiadora de arte explica porque o mundo da arte é formado apenas por homens, principalmente rodeado por essa ideia de ‘gênios’ e ‘mitos’. Combate uma possível falsa ideia de inabilidade por parte das mulheres, afirmando que a experiência e situação da mulher é diferente da do homem.

“não houve também nenhum grande pianista de jazz lituano ou um grande tenista esquimó, e não importa o quanto queríamos que tivesse existido. […] não existem mulheres equivalentes a Michelangelo, Rembrandt, Delacroix, Cézanne, Picasso ou Matisse, ou mesmo nos tempos recentes a Kooning ou Warhol, assim como não há afroamericanos equivalentes aos mesmos.”- Linda Nochlin

A mulher no cinema

Linda explica que esse questionamento tem no seu fundo uma suposição de que o ‘Grande Artista’ é o detentor da genialidade, o verdadeiro mito de comportamento divino, quase com poderes sobrenaturais. Entretanto, esquecemos de avaliar os privilégios desses artistas, seja pelo meio inseridos, pela família, ou pelo simples fato de serem homens, o que já abre muitas portas. Criamos e supomos contos de fadas para a história desses artistas.

“Para todos aqueles que, assim como as mulheres, não tiveram a sorte de nascer brancos, preferencialmente de classe média e acima de tudo homens”- Linda Nochlin

Privilégio dos homens

Parafraseando Linda, o problema não está em nossos hormônios, capacidade ou algum traço biológico ou psicológico. As instituições privilegiam homens, bem como a direção da educação. Depois de muitas lutas a mulher começou a poder fazer o simples ato de estudar e mostrar que, é sim, um ser pensante. A educação em nossa sociedade ainda condiciona, mesmo que de forma um pouco menos sexista, a mulher ao ato de criar filhos e atividades do lar. Seja por meio de brinquedos na infância, como bonecas e mini cozinhas, aos livros e histórias de princesas que sempre precisam de um príncipe para salvar.

Podemos fazer a mesma comparação e usar de explicação para o mundo do cinema de modo geral. A primeira mulher a receber um Oscar de Melhor Direção foi Kathryn Bigelow, em 2008, com o longa “Guerra ao Terror”. Com 93 anos de premiação (ainda não sabemos os vencedores de 2022), mulheres ganharam a tão querida estatueta dourada não mais que 40 vezes, com mais de 350 chances.

A premiação de 2021 ainda foi ‘revolucionária’ por ter duas mulheres concorrendo na categoria de Melhor Direção: Chloé Zhao (a vencedora), por “Nomandland”; e Emerald Fennell, por “Bela Vingança”. Não preciso dizer muito, é notório o qual ‘longe’ nossa sociedade permite que as mulheres cheguem.

[…] a questão da igualdade das mulheres, na arte ou em qualquer outro campo, não recai sobre a relativa benevolência ou a má intenção de certos homens, ou sobre a autoconfiança ou “natureza desprezível” de certas mulheres, mas sim na natureza de nossas estruturas institucionais e na visão de realidade que estas impõem sobre os seres humanos que as integram.” – Linda Nochlin

A responsabilidade da mulher para outras mulheres

Enquanto mulher, aprendemos desde cedo que a responsabilidade que temos em nossos atos é maior que a dos homens. Nossos erros têm peso triplo ou até quíntuplo. Não podemos errar, afinal, isso dá margem para justificar a ‘incapacidade’ da mulher nas atividades que são inundadas por homens.

Lembro quando li a entrevista de Patty Jenkins à Vanity Fair falando da pressão e responsabilidade em ser mulher dirigindo um filme de super-herói sobre uma super heroína, “Mulher Maravilha”. Para a diretora, seu erro poderia acarretar em consequência para outras mulheres diretoras. Em ascensão na carreira, Patty já  abriu muitas portas, mas a diretora deixou a direção de “Thor 2” por não acreditar que o roteiro resultaria em um bom filme, e diz ter feito isso pela responsabilidade em ser uma mulher à frente da direção.

“Acho que teria sido de grande impacto, teria sido minha culpa. Pareceria: ‘Oh meu Deus, essa mulher dirigiu e errou em todas essas coisas”.

Precisamos falar de Alice Guy Blaché

Mas vale lembrar que mesmo com esses fracos avanços no espaço do cinema pela mulher, esta não é de uma luta antiga. Alguns conhecem e com um recente documentário, o nome se tornou mais conhecido, mas um das pioneiras foi a francesa Alice Guy Blaché, sendo responsável pelo primeiro filme narrativo de ficção científica (alguns consideram como uma primitiva ideia de roteiro), “A Fada dos Repolhos”, em 1896.

Um trabalho marcante na carreira da cineasta é o curta de 7 minutos, “Les Résultats du Féminism”, de 1906. Com situações satíricas sobre esses ‘avanços’ da mulher, Alice retrata como seria um mundo onde as mulheres estivessem no ‘topo’ e as atividades domésticas fossem realizadas pelos homens, como no meme “como seria o mundo se o ‘feminismo’ fosse legalizado”. O curta é bem humorado e traz uma pioneira visão feminista dentro desse nascimento do cinema. É facilmente encontrado no YouTube, e, por ser do cinema mudo, dá para assistir sem problemas na versão abaixo:

#52ByWomen

Quando se pesquisa ‘cineasta’’ encontramos apenas homens. Pensando nisso, a organização Women in Film and Television criou a campanha #52ByWomen, uma proposta para que se incentive o consumo de filmes dirigido por mulheres. A ideia é buscar ver um filme por semana que tenha sido dirigido por mulheres.

E como somos vistas e representadas no cinema?

Muito já se questiona sobre essa visão e representação da mulher no cinema, seja pelo male gaze ou por uma série de estereótipos que se espalham nas produções cinematográficas.

O termo ‘male gaze’ vem da Laura Mulvey no ensaio “Visual Pleasure and Narrative Cinema”. Segundo  Mulvey, as mulheres são objetos no cinema cuja camera é controlada por homens brancos cis e heterossexuais, como câmera é ‘olho’, sua visão (gaze) é diretamente representada. Com o male gaze, a mulher existe em função do homem, muitas vezes apoiando as narrativas de um homem, seja o personagem protagonista ou não.

Outro termo bastante conhecido é o das ‘final girls’ nos filmes de terror (em sua maioria slashers). A final girl é a personagem que enfrenta o monstro e sobrevive, muitas vezes são mulheres jovens, virgens responsáveis e ingênuas, com uma bondade que lhe tira rebeldia e garante uma ‘salvação’.

No filme noir, temos as femme fatales, mulheres perigosas, atraentes, misteriosas e que despertam o pior dos homens. Em um contexto de pós-guerra, essa mulher representa o oposto da visão idealizada e conservadora que se esperava das mulheres. Mulheres independentes, calculistas e subversivas que são ‘fatais’ aos homens.

Dentro do cinema, há diversos outros estereótipos e representações sexistas da mulher, como: o ‘princípio da Smurfette’, ‘complexo de Madonna-Prostituta’ e ‘mulher na geladeira’. São muitos conceitos e essa visão do homem é o que reina.

Dê espaço para mulher fazer e falar de cinema

Diante disso tudo, o que mais podemos fazer é dar espaço para as mulheres no cinema. Então leia e indique mulheres que são críticas de cinema, mulheres que são diretoras, roteiristas e outras diversas produções dentro do cinema.

Enfim, vou deixar uma pequena lista com algumas críticas e mulheres que produzem conteúdo de cinema para fortalecer essa corrente de apoio:

Dentro dessa lista, incluo o nome de mais mulheres que fazem crítica em diversos sites, sejam de amigas, colegas e inspirações que merecem reconhecimento: Madu Garcez (Cinema com Teoria); bem como Raíssa Ferreira (Revista Singular); Fabiana Lima (Cinemafilia); Maisa  Freitas (Café com Cinema); Renata Costa (Na Minha Época era VHS); Bel Petit (Petitcast); Camila Henrique (CineSet e Biscoiteiras); Carissa Vieira (Canal Carissa Vieira); Cacau Barros (Adoráveis Cinéfilas); Julia Pulvirenti (Plano Aberto e Cineplot); Tatis Regis (Podcast Horrorizadas); Juliana Melguiso (Omelete); Lisa (Frey Obsession); Lou Cardoso (@cinelooou); Lorenna Rocha (Indeterminações); Beatriz Saldanha (Revista Les Diaboliques); Isabel Boscov; Flavia Guerra (Plano Geral); Marina Rodrigues (Cinema em Cena e Cineplot); assim como tantos outros nomes.

É humanamente impossível listar todas essas incríveis e talentosas mulheres (já peço desculpa se esqueci alguma colega ou amiga), porque, sim, a mulher no mundo do cinema existe, somos muitas, e só precisamos ganhar visibilidade e sermos ouvidas.

Vejam filmes dirigidos por mulheres, leiam críticas dirigidas por mulheres, consumam conteúdos produzidos por mulheres. E que o nosso dia seja todos os dias.

Ana Rita

Piauiense, nordestina e estudante de Arquitetura, querendo ser cinéfila, metida a crítica e apaixonada por cinema, séries, arte e música. Siga @trucagem no Instagram!
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