RESENHA | ‘A TERRA DA NOITE’, de William Hope Hodgson
Eduardo Cruz
“Como podereis saber, como eu sei, a grandeza e o terror das coisas de que falo às claras? Pois nós, com a ridícula duração de nossas vidas não temos grandes histórias para contar, a não ser os poucos detalhes que sabemos dos anos que vão além de poucos milhares. Eu, porém, devo contar-vos nas páginas breves de minha vida aqui, o bastante de minha vida que foi, da vida que tive, dentro e fora da Poderosa Pirâmide, para deixar claro a quem possa ler a verdade daquilo que conto. Porém, as histórias do Grande Refúgio não se ocupavam de poucos milhares de anos, mas de milhões, até perderem-se nas trevas do que concebiam como os primeiros dias da Terra, quando o sol, talvez ainda brilhasse fracamente no céu do mundo. Mas, de tudo que houvera antes, nada sobrara, a não ser mitos e matérias que tinham de ser acatadas com cautela e tidas em dúvida por homens sãos e de sabedoria provada.”
E eis que temos mais um livraço a sair do forno em 2018, dessa vez um clássico da literatura pós apocalíptica que levou 106 anos para ser publicado no Brasil! Bom, é como dizem: Antes tarde do que nunca! O livro A Terra da Noite foi originalmente publicado em 1912, mas inexplicavelmente, como muitos outros títulos, nunca ganhou uma edição nacional. A obra é um dos trabalhos mais notáveis do prolífico autor inglês William Hope Hodgson, que além de escrever contos e novelas, produziu ensaios e poemas, mas se destacava mesmo pela sua produção em terror, ficção científica e fantasia, além de se dedicar ao fisiculturismo (?!). Fora A Terra da Noite, Hodgson é conhecido por aqui pelo livro A Casa Sobre o Abismo, que teve uma adaptação em quadrinhos pela Vertigo em 2000, ilustrada pelo nosso queridão Richard Corben (e que foi publicada aqui com o título A Casa do Fim do Mundo pela Ópera Graphica em uma pavorosa edição em formato paraguaio e em preto e branco que me faz espumar de ódio só de lembrar. Nem o prefácio do Alan Moore salva essa publicação!). Hodgson teve uma morte trágica e prematura aos 40 anos, na Primeira Guerra Mundial, e era uma das influências confessas de Lovecraft, com suas histórias de horror estranhas e de escopo grandioso, como a dessa resenha em questão.
William Hope Hodgson |
A Terra da Noite é um dos primeiros romances do subgênero Dying Earth (Terra Moribunda), um nicho da Ficção Científica com histórias ambientadas no futuro distante, ao final da vida na Terra ou no fim dos tempos, quando as leis da termodinâmica finalmente irão cessar e a entropia terminará por consumir tudo que existe. Temas como esgotamento dos recursos naturais, a já citada entropia e a esperança de alguma possível renovação predominam, e a diferença do Pós-Apocalíptico para o Dying Earth é que enquanto o primeiro subgênero trata de destruição catastrófica, o segundo aborda a exaustão entrópica da Terra, em um cenário sombrio e pessimista.
Arte de J. Humphries |
Arte de J. Humphries |
A trama retrata nosso mundo daqui a milhões de anos no futuro. Nosso sol se apagou e os últimos humanos vivem confinados aos milhões no Grande Reduto, uma gigantesca pirâmide de metal de quilômetros de extensão e altura, no que talvez seja a primeira Arcologia da literatura. Do lado de fora, tudo é frio, estéril e desolado, e como se isso não bastasse, ainda há o cerco ao Reduto por criaturas malévolas e poderes desconhecidos na vastidão de noite eterna, em forma física ou etérea, seres que vão desde infernais cães maiores que cavalos até às colossais Sentinelas, monstros gigantes que observam o Reduto, imóveis há milênios, além de uma miríade de criaturas maléficas indescritíveis. Nosso protagonista, um jovem – e apaixonado – habitante da Pirâmide, resolve atender um distante chamado de socorro e se aventura na paisagem inóspita, enfrentando enormes perigos sobrenaturais.
Arte de J. Humphries |
A Terra da Noite foi publicado via financiamento coletivo pela Editora Clock Tower, uma editora pequena, porém extremamente engajada em trazer para o Brasil publicações clássicas de horror que sabe-se lá por quais razões foram ignoradas até então. Os caras são guerreiros, e se vocês não conhecem o trabalho sensacional que a Clock Tower desenvolve, shame on you! A editora resgata e lança uma luz sobre nichos e autores ainda injustamente ignorados por aqui, sempre relacionados direta ou indiretamente aos mythos de Lovecraft, ou no caso de Arthur Machen e Robert “O Rei de Amarelo” Chambers, influências seminais sem as quais talvez nossos queridos Cthulhu, Yog Sothoth e companhia não tivessem vindo a existir. A editora produz seus livros com muita garra, amor e tesão pela coisa, em um esquema de produção quase artesanal e na base do financiamento coletivo. Colaborei com o financiamento coletivo para a publicação de A Terra da Noite há cerca catorze meses e após tradução e revisões cuidadosas (e alguns problemas de força maior na revisão e com a gráfica), o livro finalmente foi para impressão em junho e entregue em agosto, se tornando assim o livro que mais gerou expectativas em toda a minha vida até agora rsrs. Pessoas são geradas mais rapidamente que os livros da Clock Tower, mas toda essa espera sempre vale a pena, porque no final, você tem em mãos material exclusivo e que costuma esgotar rapidamente! Mas fiquem frios: Denilson Ricci, o cabeça por traz da Clock Tower é extremamente confiável e atencioso, isso eu garanto. Perfeccionismo demanda tempo, garotada…
Arte de J. Humphries |
“Mas, em todos os que se aventuravam no perigo da Terra da Noite, se inseria, sob a pele do lado interno do antebraço esquerdo, uma pequena cápsula. E, quando a ferida sarava, o jovem podia sair em sua aventura.
O propósito disso era que o espírito do jovem pudesse se salvar, se fosse capturado, pois, então, em honra de sua alma, ele morderia a cápsula e o seu espírito teria, imediatamente, a segurança da morte. Assim, julgai quão tenebrosos horrendos eram os perigos da Terra da Noite.”
E o livro preenche todas as expectativas! Uma história que, fora um pouquinho de romantismo piegas e uma boa dose de machismo da era Vitoriana – vícios incontornáveis pertencentes à época em que foi produzido – carrega conceitos e elementos incríveis para uma história de Ficção/Fantasia que já tem 106 anos de idade: Idéias muito em voga a partir da segunda metade do século XX, como comunicação por telepatia; um pouco da tecnologia relacionada a eletricidade que Nikola Tesla concebeu é antevista aqui em equipamentos e armas; o conceito de Multiverso, mesmo que com uma nomenclatura diferente, também se faz perceptível; o Último Reduto da humanidade é uma fortaleza mega-arquitetônica que vai despertar em alguns leitores conexões com a Zion de Matrix, ou com a gigantesca nave colonizadora do filme Pandorum e até mesmo com a fortaleza de Immortan Joe em Mad Max – Estrada da Fúria, todas compartilhando a característica em comum de serem uma idealização de seus criadores para a preservação da humanidade. O livro conta com tradução e notas explicativas de José Geraldo Gouvêa, capa e dez ilustrações internas do artista Leander Moura, uma ótima biografia escrita por Filipi C. Pinto, além de mais alguns extras como glossário, notas finais e índice remissivo, além da relação dos nomes de todos que colaboraram com o projeto de publicação do livro (Sim, meu nome também está lá!😄).
O fabuloso Diskos, misto de machado medieval e motosserra elétrica, a arma mais confiável do futuro longínquo. Arte de Raymond C. Leung |
O livro já foi comparado à obra de Tolkien, e até consigo ver o motivo desta comparação no quesito inventividade e ambição: Hodgson criou um mundo gigantesco e uma cronologia que abarca não milhares, mas milhões de anos, do “presente” do narrador protagonista, no século XVII, até esta era, sem sol e com a Terra moribunda. Além disso, existem outras idéias igualmente ousadas e que refletem todo o pessimismo em se aventurar fora do Reduto, como a tradição de se implantar uma pequena cápsula sob a pele do braço dos exploradores. Na eventualidade de um perigo impossível de se transpor, dentre as inúmeras aberrações e monstros que ocupam este mundo futurista moribundo, e com o intuito de “preservar o espírito”, pois a morte física é algo brando perto das alternativas possíveis. Uma espécie de suicídio santificado. Uma solução desesperançada e cínica, que antevia os tempos negros à frente, às portas da Primeira Guerra Mundial.
Os monstros e criaturas são outro ponto de destaque da obra. Por vezes Hodgson representa entidades de imenso poder e com intenções insondáveis, ou simplesmente com uma aparente ânsia irracional por caos e destruição, ou até mesmo uma misteriosa indiferença. E é evidente que Lovecraft bebeu muito da obra de Hodgson como uma referência para compor a “personalidade” das entidades que viria a desenvolver. Forças opostas surgem, e parecem impedir as criaturas mais terríveis e poderosas de acabar com o Último Reduto, porém, essas forças aparentemente benéficas são igualmente misteriosas e insondáveis. Neste mundo existem criaturas que indubitavelmente tencionam destruir os humanos, e existem manifestações de Forças que não parecem compartilhar dessa intenção, embora também não se mostrem ostensivamente benéficas. Mas o mistério e as incertezas que pairam há milhares de anos sobre estes últimos podem ser tão perigosos quanto os primeiros. Em última análise, tudo é hostil e potencialmente perigoso neste mundo.
“Então, crendo viajar por onde decerto encontraria as estranhas Portas na Noite, tive especial cuidado em meu progresso e me detinha, frequentemente, para ouvir e olhar, atentando para a Noite ao redor. Isto não serviu para evitar que eu encontrasse aquele pavor que assombrava o vácuo, pois, de repente, enquanto andava com todo cuidado, ouvi um distante zumbido descer da noite, ligeiramente atrás de mim, e o zumbido aumentou e ficou mais claro, e produziu aquele Som mais alto ainda. Depois de ouvi-lo, não pude duvidar que outra porta se abria acima, pois o som crescia da maneira como ouves um ruído distante que se aproxima, quando uma porta é aberta, de forma que o som, se produzido naquele lugar, parecera vir de outro. Mas esse som, embora vindo de perto, era como se chegasse de uma eternidade perdida e estranha. Tento explicar isso claramente, e não me culpeis muito por falhar, pois havia um horror tão medonho nisso que mal posso esquecer, e sempre tento fazer com que outros entendam como eu aquela desgraça e terror assombrando a noite.”
Arte de J. Humphries |
Em seu ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura, Lovecraft descreve A Terra da Noite como “uma das mais potentes obras de imaginação macabra já escritas”. Clark Ashton Smith, outro monstro sagrado das pulp fictions, escreveu que “Em toda a Literatura de Fantasia, existem poucos trabalhos tão puramente notáveis, tão puramente criativos quanto A Terra da Noite“. Comparações com a prosa de Lovecraft são inevitáveis em certos trechos, como por exemplo a passagem abaixo. A Cor que Veio do Espaço? Não, A Terra da Noite!
Arte de Stephen Fabian |
“Era um lugar temível e estranho aquela Planície, como se um vácuo azul subisse da Terra por toda a região. A Planície não mostrava chamas, mas ficava oculta em uma estranha luz inconsumível, como uma atmosfera cintilante de cor azulada e fria, que não deitava nenhuma luz definida sobre a Terra da Noite, como deveria, mas uma que brilhava fria e muito assustadora, como um vácuo luminoso e azul. Os arbustos de musgo cresciam até a borda da Planície e pareciam negros e deformados contra a horrenda cintilação.”
Interessante é fazer um exercício de imaginação a respeito de como o cenário do livro de Hodgson pode ser encaixado como um possível futuro do nosso mundo no universo Lovecraftiano, quando as profecias sobre o retorno dos Antigos e outras monstruosidades abissais Cósmicas se concretizassem neste mundo pavoroso. Ler A Terra da Noite sob esse contexto cai como uma luva. Não pertence efetivamente ao cânone Lovecraftiano, porém mesmo assim pode ser deliciosamente lido como tal. Experimentem.
Arte de Barbara Sobczynska |
Mas a comparação não se limita apenas a Tolkien, que pode ter em certos momentos um tom muito lúdico e juvenil, o que leva muitos leitores a não se sentirem mais confortáveis ou satisfeitos em ler O Senhor dos Anéis ou O Silmarillion, por exemplo, depois de uma certa idade. O leitor pode se sentir deslocado, excluído, como se aquela obra não mais se comunicasse com ele. Com A Terra da Noite a diferença se faz sentir, pois é uma fantasia sim, e com elementos de ficção científica sim, porém com um tom mais dark(trocadilho não intencional heheheh). A questão do suicídio, já abordada acima, bem como vários outros dilemas morais que os personagens de uma época tão sombria e difícil são obrigados a enfrentar por vezes surpreendem o leitor, e as cenas de ação…. WOW!!! Tão colossais quanto todas as descrições de cenários arquitetônicos são as batalhas onde milhares morrem em apenas alguns momentos. Pela violência absurda e o escopo grandioso eu incluiria como comparação, além da obra de Tolkien, a Bíblia Sagrada 😂.
“Olhei em direção ao Volume e vi que vinha como uma Colina de Negrume sobre a Terra, e já bem próximo. Então, houve uma maravilha, pois, naquele momento, quando todos deveriam partir rápido para salvar suas almas, da terra subiu uma pequena Luz, como a luz crescente desta terra jovem. Ela subiu em um arco de fogo brilhante e frio, luzindo só um pouco, e se estendeu sobre os Dez Mil e os mortos. Nesse instante, o Volume se deteve, retornou e sumiu.
Então, os homens retomaram, depressa, seu retorno à Poderosa Pirâmide. Mas, antes que chegassem em segurança, o Ladrar dos Cães soou ao redor deles, e enfrentaram esse perigo, mas sem desespero, porque já haviam sobrevivido a uma ameaça bem maior.
Os Cães estavam perto, como via pela Grande Luneta, e contei um cento deles a correr em bando com as grandes cabeças abaixadas. Logo que os Cães chegaram até eles, os Dez Mil se dividiram e houve um espaço entre eles para que pudessem usar plenamente aquele terrível Diskos, e lutaram com as empunhaduras estendidas e vi os Diskos a girar e brilhar e emitir fogo.
Houve grande batalha, pois a Luz que os cobria afastava o Poder de suas almas, mas não os protegia de monstros menores. Em mais de cem mil frestas da Poderosa Pirâmide,, as mulheres choraram e soluçaram e olharam de novo. Nas cidades de baixo se disse, depois, que era possível ouvir o partir e lascar das armaduras quando os Cães corriam por entre os homens a matar, e até o som dos ossos rangendo em seus dentes. Mas os Dez Mil não cessaram de feri-los com os Diskos e, logo, cortaram os Cães em pedaços. Entre os que saíram, houve mil e setecentos abatidos pelos Cães, mas os homens alcançaram a vitória.
Então, o grupo de heróis cansados veio para o abrigo do lar no Vasto reduto, trazendo seus caídos e, também, os jovens mortos, e foram recebidos com imensa honra, muito luto e grande silêncio, pois o caso não admitia palavras, até certo tempo se passar. Houve lamento em cada cidade da Pirâmide, pois não houve tristeza tal em, talvez, mais de cem mil anos.”
Arte de Peter Andrew Jones |
Eu poderia ficar enaltecendo o quanto essa fantasia dark é excelente até o Sol se apagar, mas acho que vocês já pegaram a idéia. Essa é, definitivamente, uma história que agrada a fãs de vários gêneros. Então, galera do Sci-Fi, galera da Fantasia, e sobretudo galera dos Mythos de Cthulhu, uni-vos na Terra da Noite!!!
“Vi, então, que a Terra da Noite que eu conhecia se ocultava de mim atrás da inclinação. Virei-me e olhei encosta abaixo e tudo em frente era um deserto desolado e escuro, e não parecia ir a lugar nenhum, senão rumo a uma noite eterna. Ali não havia nenhum fogo, nenhuma luz de qualquer tipo, só a Escuridão, e eu poderia senti-la: a Eternidade. Por aquela Escuridão adentro a grande encosta parecia seguir para sempre.”
Arte de Raymond C. Leung |
Texto cedido gentilmente pelo blog parceiro Zona Negativa.