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‘A Tragédia de Macbeth’ é a melhor adaptação contemporânea de Shakespeare

Vanderlei Tenório

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17 de maio de 2022

A tragédia atemporal Macbeth (1623), de William Shakespeare, tornou-se ao longo dos séculos uma das obras de Bardo mais adaptadas em tom teatral e cinematográfico. Transformando-se, assim, em um arquétipo trágico das consequências venenosas e dramáticas da ânsia de poder.

Nessa perspectiva, o primeiro a ousar interagir com a visão e a coragem na escrita foi o icônico Orson Welles (1915-1985). Isso, logo depois de ter sintetizado melhor seu estilo cinematográfico – tanto em conteúdo, quanto visual – com uma obra-prima como Cidadão Kane (1941) e A Dama de Shanghai (1947).

Welles decidiu transpor a tragédia de Macbeth com grandes aspirações para um longa-metragem inteligente e potente, em grande calibre artístico. Era 1948, Welles trouxe para a tela grande, em um glorioso preto e branco, uma obra seminal (mas debatida) sobre os desejos mais nefastos escondidos no coração humano, mesmo os mais justos, traduzindo tudo em um vestido formal cativante e sombrio teatral, cá entre nós a obra envelheceu bem.

A Tragédia de Macbeth
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Joel Coen

Por conseguinte, aqui, não é apenas Shakespeare sendo adaptado pelo talentoso Joel Coen. Há uma jornada pessoal e intensa de Coen, que pela primeira vez, escreve e dirige um filme sem seu irmão Ethan – que já tem um trabalho solo. Sei que é estranho ver Joel sem Ethan, mas convém comentar que trabalhos solos é uma tendência que muitas vezes atravessou o cinema dos irmãos, às vezes até como um exibicionismo escolástico. Talvez justamente por isso, porém, a clareza, a geometria, o congelamento temporário da tragédia na primeira parte sejam surpreendentes antes de se tornar incandescente, impetuosa e devastadora na segunda, cheia de sangue e fúria.

Nesta nova versão de Macbeth, é Denzel Washington quem encarna o senhor escocês a quem três bruxas preveem que ele se tornará rei. Impulsionado principalmente por sua esposa, Macbeth mata o rei Duncan (interpretado por Brendan Gleeson, o Alastor Moody de Harry Potter), de quem ele é primo. Mas a partir desse momento, todo o inferno se abre em sua vida.

Adaptação teatral

Coen abandona a mitologia, segue um cenário aparentemente teatral que serve para potencializar o cinematográfico com um formato de 1:37:1. Macbeth é o filme onde a paixão do cineasta pelo cinema de Orson Welles paira por trás dele. Não só porque um dos Macbeths mais famosos da telona foi assinado pelo diretor de Verdades e Mentiras (1973), seguido por Akira Kurosawa (Trono Manchado de Sangue, 1957), Roman Polanski (1971), Béla Tarr (1982) e a adaptação plana e média de Justin Kurzel em 2015.

Mas, precisamente porque é um cinema onde as sombras se agigantam, onde a profundidade de campo é realçada, onde o rosto em movimento ocupa quase completamente o quadro à medida que avança em direção à câmera, sempre destacando o vínculo entre personagem e ambiente. O Macbeth de Coen é uma encarnação do personagem Charles Foster Kane de Cidadão Kane (1941)onde a fotografia de Bruno Delbonnel -em sua segunda colaboração com o diretor presta uma homenagem declarada a Gregg Toland.

Além disso, ele dança como corpo em uma jornada imaginária (cinemática), entre a decoração expressionista exaltada na cena em que Lady Macbeth avança no campo de visão enquanto lê a carta do marido e o céu negro com nuvens baixas de Bergman, de O Sétimo Selo (1959).

A Tragédia de Macbeth
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Clima Noir

A versão de Coen de Macbeth transforma a tragédia de Shakespeare em um noir que poderia sair da Hollywood dos anos 1940. E o faz instintivamente, com força e veemência, sem a construção cinéfila de O Homem Que Não Estava Lá (2001). Lá tinha um acadêmico preto e branco, aqui é otimista. É um filme visionário de extraordinária clareza, notável na filmagem do assassinato do rei Duncan e acima de tudo devastador no extermínio da família de Macduff. 

Sendo direto, é um filme sobre a morte, já anunciado desde o início com o soldado ferido, mas sobretudo pela presença de bruxas e corvos, pelo som dos sinos, pelo som dos passos ecoando. E é também um filme sobre o tempo (do próprio cinema) que passa inexoravelmente, de ruínas, de neblina branca suja e de poeira, em um cinema que em sua jornada ininterrupta de repente dá um salto para uma fantasia futurista à la Mad Max: Estrada da Fúria (2015). 

Nessa perspectiva, só o deserto poderia permanecer. Os protagonistas se foram. São apenas visões, alucinações, de um filme impetuoso onde o cinema já não se torna pretexto para referências complacentes, mas como algo que corre no sangue e não pode ser contido. Também é visto na ótima atuação do elenco, começando pelos olhos de Denzel Washington, até a loucura e os movimentos sonâmbulos de Frances McDormand, no sétimo filme com o marido. 

A Tragédia de Macbeth
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Racionalidade x Caos

O espectador mergulha em um universo físico em oposição à noção do teatro – que se destaca o expresso de enquadramento de Delbonnel, vindo de um universo de filme que podem surgir das consequências do crime filmado. Tema recorrente, senão mesmo protagonista, no cinema de Coens: o ser humano que tenta impor sua lógica diante da onipotência inescrutável do acaso, acabando por sucumbir junto com sua (suposta) racionalidade.

No enredo fica nítido o desejo de contar uma dicotomia entre racionalidade e caos com os vestígios da comédia do absurdo que sempre foi uma marca registrada da escrita dos Coens. Bom, sem dúvida, essa é a obra mais “séria” de um Coen – Shakespeare exige isso, e foi interessante ver um Coen mais sóbrio. Coen explora um tema mais sutil e melancólico, o do tempo que passa inexoravelmente. O desenvolvimento narrativo permanece quase totalmente fiel ao texto de Shakespeare.

Por fim, Macbeth é um dos mais belos longas produzidos por um Coen e uma das adaptações onde parece que Shakespeare escreveu a tragédia especialmente para o diretor. Além disso, na assepsia e opressão dos espaços, aparece também o fantasma de Antonioni. Com Macbeth, Coen alcançou seu magnum opus solo.

Onde assistir ao filme A Tragédia de Macbeth?

A saber, A Tragédia de Macbeth está em cartaz na AppleTV Plus.

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 Trailer do filme A Tragédia de Macbeth

A Tragédia de Macbeth: elenco do filme

Denzel Washington
Frances McDormand
Alex Hassell
Bertie Carvel
Brendan Gleeson
Corey Hawkins
Harry Melling

Ficha Técnica

Título original: The Tragedy of Macbeth
Direção: Joel Coen
Roteiro: Joel Coen
Duração: 105 minutos
País: Estados Unidos
Gênero: drama, suspense, guerra
Ano: 2021
Classificação: 16 anos

Vanderlei Tenório

Vanderlei Tenório é colunista dos jornais Tribuna do Sertão e Gazeta Regional de Jaguariúna, dos portais 082 Notícias e JB Notícias, do Web Jornal O Estado RJ – OERJ, colaborador do portal Repórter Nordeste, da Revista Alagoana, do jornal Tribuna de Itapira e do site português Cinema7Arte, além de editor da página Cinema e Geografia. Siga o jornalista no perfil pessoal, como colunista e em Cinema e Geografia.
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