Elza Soares, a deusa-mulher que ditou o próprio destino
Cadu Costa
Lenda. Mito. Ícone. Rainha. Deusa-Mulher. Nenhum adjetivo poderia ser capaz de descrever Elza Soares e a força do seu canto. O Brasil tem muitas cantoras, mas nenhuma personificou a sua verdadeira voz. Apenas Elza. Somente ela.
Seu discurso não foi feito para ser entoado por intelectuais de Ipanema. Não eram as falas da novela que se passava no Leblon. Sequer tinha significado pra ela na Itaim Bibi. Nunca foi enaltecida no Lago Paranoá. Suas palavras não faziam sentido no Jardim Europa. Elza Soares não vinha do mesmo planeta que Ary Barroso, de Chico Buarque e Tom Jobim.
- Pai e filha, Dudu e Lily Nobre relançam clássico do sambista
- Descoberta da Semana | Devon Gilfillian
- Pai e filha, Dudu e Lily Nobre relançam clássico do sambista
Fome, mulheres e dor
Elza Gomes da Conceição, a Elza Soares, vinha do Planeta Fome. Aquele lugar onde seres humanos espantam urubus para pegar o resto de comida no lixo. Elza era a voz do povo. Preto, escorraçado e deixado à margem da sociedade. Que pega o transporte público lotado às 4 da manhã com um copo d’água no estômago e uma marmita no braço esperando dar meio-dia pra engolir um feijão com farinha e banana em 15 minutos após entrar pela entrada de serviço do apartamento do patrão.
Elza cantava pras mulheres. Preta ou não, mas guerreira que cuidava de sua prole com suor, lágrimas e sangue na boca provocado pelo soco que tomou de um marido embriagado após perguntar onde foi parar o dinheiro do leite que ganhou após lavar a roupa da madame do condomínio de luxo na frente da comunidade.
Elza Soares expressava sua arte no meio de sua própria dor. Abusada desde tenra infância, obrigada a se casar aos 12 anos, a engravidar aos 13, uma esposa agredida, mãe de oito filhos sendo quatro mortos, um entregue para adoção por falta de condições e uma sequestrada enquanto bebê.
Violentada desde sempre, Elza foi uma mulher que nunca desistiu de procurar, que nunca deixou de amar mas que também não aceitava mais apanhar. De homem nenhum. De sociedade alguma sem lutar. Com o poder de seu canto, enfrentou quem viesse e disse: “Vão me bater, vão me machucar, vão me fazer chorar, vão querer me dividir, vão querer me tirar do palco, mas não me impedirão de lutar. Vão me ouvir cantar até o fim.”
Começo do sucesso
Carioca da Vila Vintém, favela localizada entre os bairros de Realengo e Padre Miguel, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Atravessava a linha férrea pra ir à sede da Mocidade Independente de Padre Miguel, sua escola querida. O samba foi o pontapé inicial para uma carreira que seguiu por todos os ritmos que a música poderia definir.
Seu jeito único de cantar com sua voz rouca chocou a plateia do programa de Ary Barroso na Rádio Tupi e ganhou primeiro lugar no concurso de calouros. Foi também o dia em que ela andou de táxi pela primeira vez. Mal sabia ela que esse veículo a levaria pro resto do mundo.
Seu primeiro sucesso como cantora profissional veio com a gravação de “Se Acaso Você Chegasse” em 1960 e na Copa do Chile de 1962, seria convidada por um empresário uruguaio para “batizar” e cantar para a Seleção Brasileira de Futebol.
E que conheceria o cantor americano Louis Armstrong, que se encantou e tentou levá-la para os Estados Unidos. Só que, nesta mesma viagem, Elza Soares se apaixonou pelo jogador Mané Garrincha e o romance virou alvo da imprensa, que a acusava de ter acabado com o casamento do craque. Então, em 1963, ela gravou a canção “Eu Sou A Outra”, para a fúria da sociedade conservadora da época.
Ditadura e Garrincha
Elza teve a casa em que morava com Garrincha no Rio de Janeiro metralhada durante a Ditadura Militar e isso fez com que eles fugissem para a Itália. De volta ao Brasil, a relação do casal foi marcada pelo alcoolismo de Garrincha e pela violência doméstica.
Em 1969, o carro de Garrincha, que estava alcoolizado, sofreu um grave acidente na Rodovia Presidente Dutra. Dona Josefa, mãe de Elza, foi arremessada para fora e morreu na hora. O casamento de Elza Soares e jogador acabou após 16 anos, em 1982. O atleta faleceu no ano seguinte, de cirrose.
Volta por cima
Em São Paulo, Elza passou a viver no ostracismo, se apresentando em circos esporadicamente. Depressiva, decidiu abandonar sua carreira. Mas, de novo, se recusava a desistir. Voltou. Com o apoio de Caetano Veloso. Gravaram um dueto da música “Língua”, sucesso de 1984.
Em 1999, ela foi eleita pela Rádio BBC de Londres “a voz brasileira do milênio”. A escolha teve origem num projeto criado para comemorar a chegada do ano 2000.
Em 2003, seu trabalho “Do Cóccix ao Pescoço” foi indicado ao Grammy Latino e Elza Soares passou a ser ouvida por uma nova geração de admiradores da MPB.
Em 2015, Elza Soares lançou seu álbum mais conhecido: “A Mulher do Fim do Mundo”. O disco foi visto como um renascimento em sua já consagrada carreira e foi eleito como um dos maiores destaques do ano até mesmo por veículos internacionais. Venceu o Troféu APCA da Associação Paulista de Críticos de Arte, o Prêmio da Música Brasileira e o Grammy Latino de Melhor Álbum de MPB.
Política
Cantou o Hino Nacional Brasileiro à capela na Cerimônia de Abertura dos Jogos Panamericanos Rio 2007. Aquele hino que é do povo e será cantado ainda mais forte no dia 02 de outubro de 2022 quando um certo genocida for tirado de um palco montado por uma legião de inconcebíveis rufiões contrários à democracia.
Porque Elza Soares também é política. Qualquer ato da cantora não era em prol de uma sociedade que insistia em excluí-la e não conseguia. Em meio à pandemia de Covid-19 que nos açoita, pediu para a população se vacinar. Durante depoimento, ela conta que se recuperou da doença e que, graças as três doses, não teve sintomas.
Aliás, em um de seus últimos shows, ela dizia que xingar o abjeto do Palácio do Planalto não servia de nada se não tivesse o povo na rua:
“Não adianta ficar aqui mandando a lugar nenhum, ele não tá nem escutando isso. A gente tem que ir pra rua. Não adianta mandar a lugar nenhum. E se gostar então, piorou ainda.”
Resistência preta
Elza Soares se tornou símbolo da resistência preta no Brasil ao afirmar que “a carne mais barata do mercado era a carne negra” e depois voltar para dizer que ela “não estaria mais de graça, pesava agora uma tonelada”. Apoiadora da causa LGBTQIA + e da luta das mulheres contra a violência doméstica e o feminicídio. Como diz a letra de “Maria da Vila Matilde”:
“Cadê meu celular?
Eu vou ligar pro 180
Vou entregar teu nome
E explicar meu endereço
Aqui você não entra mais
Eu digo que não te conheço
E jogo água fervendo
Se você se aventurar
Eu solto o cachorro
E, apontando pra você
Eu grito: péguix…
Eu quero ver
Você pular, você correr
Na frente dos vizinhos
Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”
E assim, Elza Soares cantava para proteger seu povo da maldade de gente boa e da bondade das pessoas ruins.
Do samba ao jazz; da música eletrônica ao funk
Nos 35 discos lançados, ela se aproximou do samba, do jazz, da música eletrônica, do hip-hop, do funk e dizia que a mistura era proposital. O último disco lançado foi “Planeta Fome”, em 2019.
Elza Soares estava à frente de qualquer tempo. Era uma força atemporal da natureza. ‘NaturElza’.
Elza se foi. Aos 91 anos. De causas naturais. Simplesmente foi. Calma, tranquila, ao lado da família e cercada de amor que ela buscou do início ao término de sua inacreditável vida. Escolheu seu próprio caminho, ditou o próprio destino, decidiu a hora de ir.
Ícone
Ou como diz o comunicado enviado por sua assessoria:
“Ícone da música brasileira, considerada uma das maiores artistas do mundo, a cantora eleita como a Voz do Milênio teve uma vida apoteótica, intensa, que emocionou o mundo com sua voz, sua força e sua determinação.
A amada e eterna Elza descansou, mas estará para sempre na história da música e em nossos corações e dos milhares fãs por todo mundo. Feita a vontade de Elza Soares, ela cantou até o fim.”
Salve, DELZA Soares! Você JAMAIS SERÁ ESQUECIDA!
Aliás, vai comprar algo na Amazon? Então apoie o ULTRAVERSO comprando pelo nosso link: https://amzn.to/3mj4gJa.