‘Assim como no Céu’, um exercício de frustração através do tempo
Gabriel Luna
Nós, enquanto seres humanos, estamos condicionados aos atos incontroláveis da natureza como parte de uma experiência mundana. A inevitabilidade apenas torna-se aceitável no momento que compreendemos nossas limitações perante às complexidades da vida. Lise (Flora Ofelia Hofmann Lindahl), ao se deparar com a possível morte de sua mãe durante o parto, precisa assimilar a efemeridade da vida em um exercício de frustração causado pela incapacidade de interferir nesses caminhos dolorosos conduzidos pelo fluxo do tempo.
Filha de fazendeiros e com plena possibilidade de ser a primeira da família a frequentar a escola, no final do século 19, coloca em voga questões sobre a primeira onda feminista que estava surgindo, mas limitava-se aos grandes centros. A educação é vista como abandono das responsabilidades matriarcais sugeridas por uma passagem de bastão de mãe para filha. Negar seu dever enquanto figura feminina (um preparatório para assumir a casa) traria a ira dos céus devido a um deslocamento da ordem natural instalada naquele pequeno ambiente. A fúria, aqui, aparece primeiro pelo descontentamento do pai, para depois chegar numa possível consciência divina.
Quebra de inocência
Durante sua construção de uma tragédia anunciada, é por meio da constante quebra de inocência que Tea Lindeburg vai aos poucos preparando o terreno no filme Assim como no Céu (Du Som Er I Himlen). O início dinâmico entre brincadeiras infantis e a sensação de despreocupação são trabalhados com muito entusiasmo para dar o contexto de pureza entre Lise e seus irmãos. A energia desses momentos acontece pela câmera movimentada atrás dessas ações. Quando não está buscando alguma reação natural de sua protagonista, a diretora nos localiza no meio da dinâmica como verdadeiros participantes.
Apesar de evocar todo um sentimento particular da infância, o balanço entre a transição de fases vivido por Lise pode ser sentido nos momentos que situam a personagem em uma composição mais íntima. O olhar no espelho, encarando o próprio reflexo como símbolo do autoquestionamento perante seu lugar no mundo; assim como o reconhecimento das mudanças no corpo causadas pelo crescimento; dão a personagem vestígios de um irrevogável afastamento com seu atual estado infantil.
O tempo
Como componente central da trama, o tempo não se fecha apenas no microuniverso da protagonista, mas se expande em uma lenta passagem que dita o fluxo de apreensão. Quanto mais espera o resultado – se a mãe irá sobreviver ou não – a percepção de um provável futuro começa a mostrar-se como punição pelas atitudes “rebeldes” que antes a guiavam. Perder um objeto precioso, ter afeição por um garoto, desobedecer uma vontade maior, tudo parece surgir como justificações que levaram a este grande sofrimento interminável.
Nesses momentos, ações adquirem intenções quase violentas por meio de impulsos contidos sobre o recebimento da situação. A duração do tempo tende a aumentar cada vez mais em uma sufocante crescente de angústia que tem a única função de reforçar a fragilidade da circunstância humana enquanto condição irreparável. Existe uma transitoriedade da personagem por essas ocasiões que se aliam com a decisão de mostrar o que está fora de alcance como uma abordagem expositiva, mas pontual, de evidenciar a desgraça como castigo.
Sonhos premonitórios
Castigo esse que está enunciado desde o princípio pelos sonhos premonitórios, ora explorados de forma abstrata, ditando o rumo de certas decisões, em uma mistura entre mensagens etéreas e desespero. Ora por meio de exemplos próximos, como no caso do menino deixado pelos pais para oferecer seus serviços ao novo dono da fazenda. Esta, em especial, conversa com a sensação de ser esquecida por deus, de estar entregue ao receio de ter sua vida destruída e reconstruída para atender uma espécie de chamado às atribuições imprescindíveis. Os sonhos são deixados de lado em uma triste compreensão do tempo e seus flagelos como aprendizado da prática existencial.
Em um exercício doloroso, o filme Assim como no Céu mostra como não estamos totalmente preparados para qualquer dificuldade, onde a sensação do futuro é tão incerta quanto instável. O tempo, como único agente confiável de todo o processo, ressalta nossa inferioridade diante de elementos que estão muito acima de tudo. Logo, prova-se inútil lutar contra forças colossais dessa maneira. Cabe a nós, enquanto seres humanos, transcender-mos sobre a vontade do tempo em um acordo particular com o incompreensível.
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Trailer do filme Assim como no Céu
Assim como no Céu: elenco do filme
Flora Ofelia Hofmann Lindahl
Ida Cæcilie Rasmussen
Flora Augusta
Palma Lindeburg Leth
Ficha Técnica
Título original do filme: I Comete
Direção: Tea Lindeburg
Roteiro: Tea Lindeburg, baseado no romance de Marie Bregendahl
Onde assistir ao filme Assim como no Céu: Mostra de SP 2021
País: Dinamarca
Duração: 85 minutos
Gênero: drama
Ano de produção: 2021
Classificação: 14 anos