Ao Seu Lado
Crítica do filme
O fado é o mais famoso e provavelmente o principal estilo musical português. Geralmente, cantado por uma pessoa acompanhada por uma guitarra clássica (viola) e uma guitarra portuguesa. E muito sentimento, em especial, a melancolia. Esse estilo musical casa poeticamente com A Vida Invisível de Karim Ainouz e, não à toa, é usado na trilha sonora com “Estranha forma de vida”, na acachapante voz de Amália Rodrigues.
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A simbologia de água está fortemente presente no longa-metragem de Karim: “E vai chover”, diz Guida, no início. Sim, uma chuva de luta, dor e sofrimento. Para Carl Jung, “o elemento água é o símbolo mais comum do inconsciente”. A água é adaptável, pode ter aparência frágil, mas é forte. Por exemplo, numa entrevista concedida em 1971, no programa The Pierre Berton Show, Bruce Lee, o mestre do Kung-Fu, filosofa: “Esvazie sua mente, não tenha forma, seja maleável, como a água. Se você coloca água numa xícara ela se torna a xícara. Numa garrafa, ela se torna a garrafa. Se a coloca num bule, ela se torna o bule. A água pode fluir, ou pode esmagar. Seja como a água, meu amigo.” Água, substantivo feminino.
Após as cenas inicias, o título A Vida Invisível surge nas nuvens, que encobrem o Cristo Redentor, aos poucos, em vermelho, cor muito presente durante toda a exibição, expressando intensidade, sexo, perigo. Assim como o azul, que faz um contraponto, trazendo melancolia, monotonia e passividade.
Um famoso fado cantado por Amália Rodrigues é Carta a um Irmão Brasileiro (autoria de Ulisses Duarte e Fernando Rebocho Lima). Pois diz assim: “Ai meu irmão brasileiro / Tivesse eu dinheiro / Iria ao Sertão / Beber poesia, até naufragar / Depois ficaria ouvindo o Catulo / Chorando poemas ao som do luar“. Lembrei dessa pelo mote do filme, onde as cartas tem grande importância na narrativa e um marinheiro ajuda no naufrágio de uma família.
Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler) vivem em um rígido regime patriarcal e acabam trilhando caminhos distintos e paralelos, nunca esquecendo uma da outra. “Com que Voz” é outro fado (de Alain Oulman e Luis de Camoes), onde Amália, visceralmente, canta “Triste quero viver / pois se mudou em tristeza / a alegria do passado“. Assim vão em frente Eurídice e Guida, sem passado. E sem futuro.
Inclusive, Eurídice é um nome oriundo da mitologia grega, personagem que foi mordida por uma cobra, morreu, e foi levada ao mundo inferior. Orfeu, seu marido, vai atrás dela e faz com que Hades libere seu retorno ao mundo dos vivos, com uma condição. Em A Vida Invisível, não há Orfeus e sobram Hades, mas Eurídice ainda assim fica presa ao mundo inferior e a escolha do nome é pontual.
Ademais, somos transportados para o Rio de Janeiro dos anos 50 pela direção de arte que ainda complementa mais ao filme na escolha dos figurinos, cenários e suas cores, em especial, repito, vermelho e azul. Assim como no predomínio da cor verde escura, muitas vezes ligada a morte, na cena do nascimento do bebê Chico. O que deveria ser alegria é o fim de sonhos e um choque de realidade. Carga pesada. Temos também muitos espelhos, que nunca mostram um reflexo bonito, mas sim realidades distorcidas e depressivas.
Guida vive uma vida independente e sofrida de um lado, enquanto do outro, Eurídice precisa aturar o bobo Antenor (Gregório Duvivier) e a cumplicidade dos homens que matam seus sonhos. Os poucos momentos de felicidade dela nos trazem alguns poucos segundos de alento, contudo, o acúmulo de sentimentos e frustrações pode explodir. Sua vida segue como um pesado fado, constante fardo.
Outra lição que paira é que família não é sangue, é amor, demonstrada na figura da personagem Filomena e sua relação com Guida. O filme é longo, a jornada é árdua, e esta é a escolha de Karim Aïnouz. O diretor capricha nos usos da profundidade de campo e na inteligente utilização do foco para expressar o que deseja.
A saber, o filme é baseado no livro A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, e segue duas irmãs, dois caminhos, dois destinos, dois sonhos até um fim derradeiro, sensível e reavivador. A referência à Central do Brasil é clara, pois as cartas estão em ambos, assim como Fernanda Montenegro, emocionante.
Ao final do filme, sobem os créditos, fica o gosto de um fado de Amália Rodrigues, maior fadista de todos os tempos. Essa triste, inebriante e melancólica arte visceral. E, como o fado, A Vida Invisível não é para qualquer um. “Foi por vontade de Deus / Que eu vivo nesta ansiedade“
A exposição Egito Antigo: Do Cotidiano à Eternidade vai até 27 de janeiro de 2020 e traz esculturas, pinturas, objetos e até uma múmia. Além disso, apresenta instalações cenográficas e interativas que remetem ao tempo dos faraós. Todo o acervo é do Museu Egípcio de Turim, na Itália. O horário é de 09h às 20h, com entrada franca (fecha às terças).
*A coluna BÔNUS, sai toda quarta-feira aqui no BLAH!ZINGA, um oferecimento do Alvaro Tallarico, vulgo @viventeandante 🙂