Me acostumei a ficar na janela sentindo a brisa. Uns vão para as terapias, outros meditações e eu venho para a janela e escuto os sons. Não os que vem da rua, mas o da minha alma. Vou tentando equalizar as pendências e as decisões que devo tomar. Isso não significa que eu não as tome erradas uma vez por outra, mas eu deixo a brisa refrigerar minhas idéias e vou reavaliando os caminhos.

Minha mãe infesta a casa de sinais de quem procura a paz. Um rosário pendurado ali, uma compilação de nossas senhoras de tudo quanto é quanto, livrinho de oração. Vai para a missa, um retiro aqui, outro ali em busca dessa paz, mas vive transtornada. O síndico do prédio é de uma dessas igrejas pentecostais de sei lá o que e vive vendendo a paz. Que deus proverá tudo, mas é falado na boca miúda dos pequenos enganos financeiros cometidos coincidentemente sempre favorecendo a si, seja nas contas do edifico, ou de sua oficina. Vive dizendo que está estressado e que deus lhe acalma a alma.

Quem sou eu para saber o melhor para essas pessoas e tantas outras? Você mesmo deve conhecer alguém assim, mas eu? Eu não procuro nada. Apenas venho para a minha janela sem pretensão alguma.

Tem época que eu pego minha moto e vou para alguma cidade do interior, uma lagoa, uma chapada, uma praia e todos os lugares funcionam muito bem nesse propósito de esvaziar a cabeça e energizar o corpo para os próximos dias. Quando volto, minha mãe já está reclamando que eu devia buscar a paz. As vezes encontro o síndico no elevador e blá blá blá. Isso sem contar o porteiro, o cobrador do ônibus o senhor da padaria. Eu passo reto e vou para a minha janela. As vezes me sento nela, as vezes nem chego nela colocando um som para dançar ou posso me apoiar nela fumando um cigarro. Posso inclusive me divertir com a fumaça.

MInha mãe passa e começa a reclamar do cigarro, mas não tem muito tempo para mim na verdade. Vai para o quarto da minha irmã e começa a discutir com ela, tentando dizer que ela tem que se entregar para Jesus. Curiosamente, minha irmã já se entregou, mas é uma igreja evangélica, então fica cada uma tentando convencer qual tem o Cristo certo, sendo que em minha cabeça, falam de um mesmo Cristo. De minha janela eu acho engraçado. Minha mãe se entregou para Jesus. Minha irmã também e se tem alguém sem se entregar nessa casa, sou eu. Elas no entanto querem convencer que o Cristo da outra que historicamente parece ser o mesmo, está errado para passar para o Cristo da outra. Nunca dá certo, saem estressadas uma com a outra por causa do Cristo da outra e vão procurar a paz em seus Cristos pessoais. Aquele mesmo que é o mesmo da outra, mas que está errado segundo a visão da outra. Eu? Eu continuo na janela. Até já pensei em escrever um conto de uma criatura interplanetária que chegaria ao mundo pela minha janela. Alenaj seria o nome dele. Janela ao contrário, mas, sou péssima com as palavras. Sou boa com produção executiva. Apertar o povo no horário, conferir cronograma, prever problemas e antecipar soluções. Sou conhecida inclusive por entregar projetos e similares antes do prazo. Sempre andando rápida de um lado para o outro, com um cigarro na mão e o celular no outro. Minha pseudo pausa para pensar é enquanto tomo café, mas nossos celulares se configuraram em pequenos computadores de bolso e simplesmente não paro. O povo pensa que eu chego em casa e continuo pilhada assim, mas não, em casa eu tomo uma ducha e um café muito mais demorado e apreciador para então subir para o meu quarto. Na janela eu espero. Não me pergunte o que. Eu não sei. Talvez eu nem espere na verdade. Eu fico ali. a Janela fica ali, eu olho para ela, ela para mim e as vezes pergunto se Alenaj virá mesmo visitar a terra. Nunca veio. Não sei se vem, mas partindo do princípio que isso é coisa da minha cabeça…

Ontem eu vi um acidente da janela. Tomei aquele susto de início e até desci para ver se estava tudo bem com o pessoal. Juntou aquela multidão em volta e vi como tem gente que precisa ser o centro da atenção de qualquer forma. Enquanto os envolvidos na colisão discutiam, Seu Arnaldo dava a versão dele do ocorrido que ao meu ver, era uma versão da de um dos envolvidos no acidente. Uma versão foi se moldando a outra, enquanto o outro envolvido ficava pocesso. Posso assegurar pelo que vi que a versão sustentada por ambos era completamente errada e mentirosa. Contaria a minha versão do que vi de minha janela quando a perícia chegasse, mas sabe aquele ditado? A vida imita a arte? Pois é. Exatamente a Dona Clemente, ex-recém mulher do Seu Arnaldo viu o que eu vi e começou a chamar ele de mentiroso. A discussão foi se acalorando e já tinha gente falando que não devia ser nem uma coisa ou outra. Que Seu Arnaldo e Dona Clemente hoje eram capazes de brigar com um simples bom dia de cada um. Fui embora e não sei exatamente como resolveram, mas vi da minha janela a perícia. A questão é que não estava ninguém machucado fisicamente. Mentalmente eu já não sei. Passaram umas 3 horas e um lado acusando o outro. Quase me deu dor de cabeça. Antes disso, resolvi sair de casa. Fui ver um filme no cinema. A vida imita a arte… não era o Alenaj e sim um casal separado que brigava por tudo no filme, mas como era uma comédia, do jeito que as coisas eram colocadas. Dei bastante risada e voltei para casa leve. As brigas do casal do filme eram sempre coisas leves, mas que eles davam uma importância tão grande nessa vontade de mostrar o certo ao outro que o peso do rancor estava sobre as costas de cada um.

Nunca tenho insônia, mas essa noite, Morpheu deve ter tido outros compromissos e me deixou a ver navios e então eu fui para a janela. Ela que sempre me acalmava me deu um desconforto por um leve momento. Lembrei do acidente e pensei que poderia lembrar para sempre dele e isso podia travar a minha janela que me liberta. Era isso… Morpheu foi o primeiro a não vir e me mostrar que meu canal estava fechado. Eu teria que encontrar a paz de outra forma. Jesus? Terapia? Meditação? Uma semana se passa. Uns dias eu dormia, outros não, mas a janela…Alenaj chegou? O estresse durante a semana foi aumentando. No final de 15 dias, estava cansada como não me era de costume. Letárgica, as pessoas pensavam que eu estava mais relaxada, mas na verdade, estava dispersa e exausta. Comecei a pensar se estava triste e pensar sobre estar triste podia ser uma tristeza ainda que branda.

Marquei com Jesus de minha mãe e cochilei naquele ritual sem sentido para a mim. No Jesus de minha irmã me senti irritada e deixei o local antes de terminar. Fui para o cinema. Comprei um ingresso, mas fui tomar um café. Havia ainda 40 minutos para a minha sessão e tinha um certo rebuliço sobre uma senhora que começaria a sua coletiva. Não entendi nada, mas já estava no local e tinha que esperar. Era uma senhora que teve sua história filmada e estava ali para a pré-estréia do filme sobre o acidente que lhe aconteceu em alto mar. Ela fora a única sobrevivente, ainda que improvável.

– Dei sorte – Dizia ela que pensou que morreria ao ser encontrada dois dias depois com fome e sede se segurando em um barril de vinho do próprio navio –Tive que me amarrar à ele no segundo dia por quê cochilava e largava o barril.

– E a senhora teria coragem de voltar ao mar? – Perguntou um dos jornalistas.

– A vida é como uma folha em branco que você tem que digitar meu filho. Todo dia ela vai estar lá te esperando e tudo depende de como você enxerga as coisas. O mar sempre esteve ali e sempre estará. Posso nunca mais entrar no mar e morrer atropelada por um carro louco que invade a calçada ao sair daqui.

Fiquei com isso em minha cabeça. Mesmo durante o filme. Acabei não me concentrando direito no filme ou ele era desinteressante mesmo. Cheguei em casa. Tomei uma ducha, comi alguma coisa e a imagem da senhorinha não me saia da cabeça. Queria voltar lá e perguntar para ela se ela tinha Jesus ou alguma terapia, ritual, mas depois de muito tempo adormeci. Dormi como não fazia desde o acidente. O sonho foi surreal. Alenaj entrava pela minha janela e me levava para falar com a senhora. Lhe perguntei com o que encontraria a paz. Uma religião? Um esporte? Um livro?

– Com o que você quiser querida. Tudo está dentro de sua cabeça e com a forma como olha para ela.

Não falava mais nada e Alenaj me conduzia de volta para a minha cama. Acordei feliz, radiante e me sentindo disposta, mas demorei alguns minutos para lembrar do sonho. Encarei minha janela/Alenaj e senti a velha brisa me tocar. Derramei umas lágrimas. Não era tristeza e nem alegria. Era alívio. Decidi escrever um romance de ficção científica. Já sabia o nome: Alenaj!