Rua dos Prometheus, 214. Eu sempre me perguntei quem havia prometido alguma coisa quando era pequeno. Só fui entender realmente a história quando já havia saído dali. Ah… o número 214 nem existia de fato. As vezes existia de papel e sempre de fé.

As percepções de uma criança são realmente inocentes, mas por vezes consegue encontrar lógicas que os homens não encontram, mas claro, confesso que quando cheguei nessa rua hoje, ficou claro que o nosso número 214 era na verdade uma caixa de correios coletivo dos números 213 e 215.

Eu era ainda muito pequeno. 10, 11 anos. Além de ser pequeno, eu era de uma raça e ela era de outra (digo isso com a mesma indignação da época). Para mim, éramos gente. E eu era de uma religião, enquanto ela de outra. Não precisa ser muito gênio para entender que fomos afastados por nossas famílias não é? Eu também vinha de uma família pobre, enquanto ela tinha dinheiro. Se eu tivesse ainda mais dinheiro do que a família dela, isso haveria mudado alguma coisa?

Não me lembro quem deu a idéia, mas passamos a nos corresponder por bilhetes na Rua dos Prometheus, 214. Eu passava, deixava um bilhete, ela passava e deixava o dela. O final de semana era torturante. Eu sabia que não haveria resposta dela, afinal, ela não passaria em frente ao nosso número 214 se não houvesse aula. E as férias? Eu começava a sofrer semanas antes delas começarem só de pensar que o nosso sistema de troca de correspondência seria cortado. Eu talvez fosse o único da escola que queria a volta as aulas logo no primeiro dia de férias. Eu e ela quem sabe.

Tudo deve ter durado entre um ano e um ano e meio por que me recordo claramente de duas férias entre nós. Depois, ela se mudou de escola e passei um bom tempo conferindo o número 214 e nada, afinal, ela não passava mais na rua. O número 214 que não existia de fato… as vezes eu fazia o número 214 em uma folha de caderno e dobrava parte da folha para dentro da caixa para termos o número que pela fé sempre houve. Meu grande sonho na verdade era pintar o número 214 e quando eu realmente tivesse dinheiro, mandar fazer uma placa com o número e fixar na parede. Eu achava que esse era o meu maior sonho na época. Hoje eu sei que é algo tão simples e na verdade eu queria reforçar a conexão com ela, mas quando ela se mudou de escola, perdemos tudo…

– Moço, o senhor está bem?

– Hã? É… sim sim… estou bem. Estou só revisitando meu passado. Eu morei aqui nessa rua quando pequeno.

– Achei estranho. Nunca vi um carteiro sentado assim.

– É, eu não deveria, estou em trabalho, mas estou aqui relendo meu passado.

– Então tudo bem moço. Tomara que esteja gostando do seu eu passado.

– Acho que mais do que o eu presente.

Olhei para ela e sim… era ela. Fiquei sem ação e pateticamente congelei. Só deu tempo de odiar a minha reação, ou falta de. Como queira, mas agora acho que ela também não soube muito o que fazer e só me toquei disso quando a filhinha dela reclamou que chegaria atrasada na escola, mas ela conseguiu falar antes que eu.

– Por que você não passa uma mensagem para o 214?

– 214?

– Sim – E ela olhou para a caixa- Agora tenho que ir. Aguardo sua mensagem.

Fiquei olhando ela se afastando. Uma vez ou outra ela olhava para trás mas eu nem disfarçava que estava olhando para ela. Só não sabia o que fazer com a boca e aquele monte de dente escancarado e então finalmente ela desapareceu de minha vista. Olhei para o relógio. Já fazia quase meia hora que eu estava na Rua dos Prometheus. Um verdadeiro absurdo. Meia hora por uma carta. Não, por duas. Escrevi apenas o número de meu whatsapp e coloquei no 214. Eram duas correspondências em meia hora. Menos mal.

E se ela não tiver whatsapp? Bom, então ela terá o meu número e poderá me passar uma mensagem ou mesmo ligar. Mas calma. Ela tinha uma criança que certamente levaria para a escola e apenas foi educada. Ela nem deve entrar em contato de fato. Trabalhar entregando cartas tinha a vantagem de se poder pensar no que quiser o tempo inteiro e claro que o resto do dia não me saiu da cabeça o encontro “Promethido” e eu já não sabia mais se era filha dela. A menina falou apenas – Vamos, vou chegar atrasada – Mas, a verdade era que elas se pareciam muito. A melhor coisa que eu tinha para fazer, era parar de viajar e qualquer som do whatsapp se tornou um inferno para mim. Eu sempre achava que era ela.

17:20h. Já estava naquela fase de olhar o relógio e contando quanto tempo faltava para eu largar o trabalho e outra mensagem chega.

– Ainda bem que fui deixar minha sobrinha na escola e engraçado. Seu número termina com 214.