Bar Doce Lar | Um ensaio autobiográfico?
Vinícius de Lacerda Mesquita
O que são memórias senão uma “visão do diretor” sobre a própria vida? Lançado em 2021 pela plataforma de streaming Amazon Prime, o filme Bar Doce Lar (The Tender Bar) traz à tona uma adaptação autobiográfica do livro homônimo escrito por J. R. Moehringer, no qual sua vida é o centro de todo o enredo. Sob a direção do experiente George Clooney, a história ganha contornos de vida real, numa busca por destino, sucesso, reconciliação e assimilação/integração de traumas do passado.
A história
A narrativa coloca o pequeno Junior como protagonista de suas vivências. Desde à infância difícil e cheia de desafios, passando pelo início da vida adulta, bem como o peso que essa fase coloca nos ombros de qualquer pessoa. Sua mãe precisa lidar com o orgulho e encarar a vaidade de precisar retornar à casa dos pais. Yma espécie de refúgio para o restante da enorme família Maguire.
Apesar da ausência do pai (que trabalha em rádios pelos Estados Unidos, fugindo das responsabilidades e do risco de ser preso por não pagar pensão), JR (nome adotado pelo garoto na escola, pela vergonha de carregar o mesmo nome do pai) encontra uma oportunidade de se tornar um bom homem, tendo como figuras masculinas seu brilhante e excêntrico avô e seu tio Charlie, ainda mais inteligente e formado na escola da vida.
Aliás, o principal cenário do filme e os melhores acontecimentos da vida do garoto se passam no bar do tio Charlie, cujo nome representa (e muito) o ambiente e o futuro do menino. Trata-se do The Dickens, em Long Island. Dedicado ao escritor Charlie Dickens, mais do que um refúgios para beberrões, é uma espécie de biblioteca, na qual grandes clássicos da literatura podem ser lidos entre uma ou outra dose de whisky ou gin.
Mas a grande tensão de Bar Doce Lar é sobre as escolhas que Junior precisa fazer na vida, que se dividem entre agradar à mãe, ingressando na renomada Universidade de Yale para cursar Direito; ou seguir seu caminho como escritor, mesmo que à base de ferro e fogo, uma desilusão amorosa que beira à obsessão e a sombra de um pai ausente.
Literatura e vida se misturam
Há tantos elementos a serem analisados na produção que seriam impossível esgotá-los em apenas um texto. E, como toda crítica/opinião é apenas uma diante de tantas outras possíveis, vale o que ficou na memória (olha ela aqui) e que atravessou o coração deste que escreve.
O título do filme original The Tender Bar é, naturalmente, um jogo de palavras com a profissão de bartender, mas aqui ganha muitos outros sentidos. Isso porque ‘tender’ pode significar suave, proposta, afeto, frágil, juvenil e mais uma série de outros sinônimos. Todos, inclusive, traduzem bem o que aquele lugar, os acontecimentos e as pessoas representam para o protagonista.
Na trama de Bar Doce Lar, o tio (vivido por Ben Affleck) é um mentor espiritual, um guia, é quem preenche esse vazio masculino na vida de JR, ensinando-o como sobreviver no mundo dos homens adultos e como lidar com os próprios sentimentos.
Charles Dickens e a luta de classes
Sobre o nome do bar, também há diferentes possibilidades de compreensão. A julgar pela vontade de Junior de se tornar escritor, conecta-se ao próprio escritor que dá nome (e vida) ao lugar. Charlie Dickens é considerado um dos mais importantes romancistas e contistas ingleses de sua geração. Um autor que se preocupou em denunciar os problemas sociais criticando os modelos trabalhistas na transição do século 19 para o século 20 e as terríveis consequências da revolução industrial na vida dos mais pobres.
Dentre suas obras mais importantes, destacam-se duas. A primeira, é o clássico Um Conto de Natal – a velha história do velho senhor Scrooge, um avarento que fora visitado por três espíritos na véspera de Natal. Depois dessa experiência, ele mudou completamente sua vida e se dedicou a ajudar quem mais precisava. No filme, o avô de JR parece ser uma espécie de paródia do personagem. Afinal, também é um sujeito pão-duro e acaba por substituir parte da figura paterna que falta ao menino.
A segunda obra é outro grande clássico: Oliver Twist – a história do menino órfão que precisa sobreviver na dureza de Londres, na busca por um destino melhor. Essa, com certeza, uma inspiração na própria história do escritor J. R. Moehringer, projetada no pequeno JR Maguire e inspirada.
Isso porque fica subentendido, o tempo todo, se o sucesso ou fracasso dependem ou não das origens e de um passado duro; ou se é o acaso quem conduz ao destino final. Mas, independentemente de como se começa ou se termina o caminho, é no processo que está o segredo da jornada.
Ilíada e Odisseia
Também se destacam duas das maiores obras-primas da literatura ocidental. A Ilíada de Homero, obra fundante na literatura do Ocidente, considerada a primeira e mais importante. O livro conta a história da famosa Guerra de Troia e a disputa entre Aquiles e Agamenon, o amor impossível materializado na figura da Helena de Troia, e a famosa tática do Cavalo de Troia.
Para o filme, certamente é uma metáfora para a desilusão amorosa de Junior, ao se apaixonar por uma jovem rica que o trai várias vezes. Mostrando, assim, a guerra de classes e como essa é sempre uma temática recorrente.
E, por fim, A Odisseia, também de Homero, principal epopeia que narra a história de Odisseu e as consequências da Guerra de Troia para esse personagem. Ele precisou deixar seu reinado e sua esposa para se lançar ao mar, sendo vítima e joguete nas mãos dos deuses do Olimpo, os quais queriam testar sua bravura e seu valor como verdadeiro herói.
Pra variar, os complexos…
E por falar em influências dos deuses, é preciso invocar o velho Jung para falar sobre os tais Complexos Materno, Paterno e de Édipo. Mitologicamente, os três possuem relação com as antigas histórias e lendas dos gregos. Representando como essas se tornaram, simbolicamente, patologias e transtornos sob a luz da Psicologia Moderna.
Para Jung, um complexo é uma temática ligada aos afetos, os quais podem desencadear consequências positivas ou negativas. A questão é: quando um complexo se torna muito forte, autônomo e recorrente, passa a afetar a vida de uma pessoa, provocando reações consideradas absurdas ou inadequadas, num quadro de repetições e automação. Em outras palavras, tornam-se verdadeiras influências invisíveis. E, caso não sejam trazidas à consciência, provocam as chamadas neuroses.
No filme, JR vive o tempo todo entre a cruz e a espada, tendo que lidar com a satisfação dos desejos de uma ótima mãe, porém que o oprime inconscientemente em sua tentativa se de tornar um homem. Também vivendo os conflitos da falta do pai, que se torna uma sombra em sua vida, ou uma tentativa, mesmo que irracional, de superação ou tentativa de se provar valoroso.
Esse complexo remete-nos às origens arquetípicas dos próprios titãs e deuses, por meio da opressão patriarcal e masculina das figuras de Urano, Cronos/Saturno e Zeus.
E, por fim, a castração simbólica diante do peso de um destino que parecer já estar desenhado, reunindo os outros dois complexos sob a forma de casamento com a mãe e morte do pai (superação das influências da mãe e do pai). Enfim, uma síntese da vida de todos nós. Os heróis e heroínas do dia a dia, na eterna sina de vencer as batalhas da vida.
Veredito
Bar Doce Lar, mais que um filme de memórias, é um ensaio científico e literário que mergulha profundamente na psique do autor. Mostrando-nos, portanto, como a criatividade, o sofrimento e os traumas podem forjar a mente e o coração de um homem, levando-o a superar a si mesmo por meio da arte.
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