BAÚ DO BLAH! | ‘O Poderoso Chefão’ (1972)

Bruno Giacobbo

Qualquer pessoa que já tenha pisado em uma sala de cinema ou tenha o hábito de ver filmes, nem que seja de vez em quando, já ouviu falar na trilogia O Poderoso Chefão. Se não ouviu, ou é um ET que acabou de pisar na Terra, ou viveu a vida inteira na caverna da alegoria de Platão. Não ter assistido a um dos três longas (1972, 1974 e 1990) é possível. Eu mesmo, considerando o meu nível atual de adoração por eles e de cinefilia de uma maneira geral, os vi, pela primeira vez, bem mais tarde do que outras pessoas, mas jamais ter ouvido falar é impossível. Esta não é somente a maior trilogia de todos os tempos. É uma religião professada nos quatro cantos do globo e que conta com seguidores espalhando suas lições. Assim como acontece com “A Arte da Guerra”, livro de Sun Tzu, a mitologia do romance de Mario Puzo, adaptada para os cinemas pelo próprio autor junto com Francis Ford Coppola, é usada quase como um guia de como se relacionar no trabalho, na política e em família.

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Qual é o segredo deste sucesso? Algumas razões podem ser elencadas, as mais óbvias dizem respeito a própria qualidade fílmica, sobre as quais irei discorrer ao longo dos três textos que escreverei. Todos os três longas não são menos do que filmaços. Os dois primeiros, inclusive, figuram em qualquer lista que se faça de melhores filmes da história. No entanto, há uma razão que, para mim, está acima de todas as outras: o seu enorme grau de fidelidade à realidade. Escritor talentoso, Mario Puzo não tirou tudo de sua cabeça fervilhante de ideias. Estas, na verdade, brotaram de uma observação plena da sociedade e do mundo em que ele cresceu. O Poderoso Chefão não versa apenas sobre a saga de uma família siciliana na América. Ele versa, também, sobre o lado negro do “Sonho Americano” e o que homens (e mulheres) são capazes de fazer para assegurar de que não serão excluídos do “Destino Manifesto” que, pelo menos em tese, deveria contemplar todos os americanos.

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Quase todos os personagens principais são inspirados em personagens reais. Frank Sinatra, por exemplo, nunca gostou de ver seu nome associado à máfia. Todavia, como não assistir aos filmes sem pensar que Johnny Fontane (Al Martino), afilhado de Don Vito Corleone (Marlon Brando), é Sinatra? Sabem a história de que Luca Brasi (Lenny Montana) teria posto uma arma na cabeça de um líder de banda para liberar Fontane de um contrato ruim, contada por Michael (Al Pacino) para Kay (Diane Keaton), durante o casamento de sua irmã Connie (Talia Shire)? Ela é verídica e foi protagonizada por Willie Moretti, primo e capanga do chefão Frank Costello. Moretti fez isto com Tommy Dorsey, um líder de banda que não queria liberar o velho e bom “Blue Eyes” de um contrato igualmente ruim. Por sinal, Costello, chefe de Moretti, é uma das inspirações de Don Vito, chefe de Brasi. Brando criou aquela icônica voz rouca, tão assustadora quanto a de James Earl Jones como Darth Vader, após escutar fitas com vários depoimentos de Costello ao Comitê Kefauver sobre o crime organizado.


 

Histórias como estas povoam os capítulos da trilogia. Mais à frente, voltarei a elas. Por agora, gostaria de destacar a importância de Francis Ford Coppola em relação ao grau já citado de fidelidade à realidade. Se a trama e os personagens são frutos da observação de Mario Puzo, os filmes como o conhecemos são mérito total do cineasta. A trama toda se passa na década de 40, nas ruas de Nova Iorque e da Sicília. Por uma questão de custos e até porque outros projetos  recentes sobre a máfia não tinham dado certo, a intenção da Paramount Pictures era filmar quase tudo em estúdio e trazer a história para os anos 70. No entanto, o cinema americano vivia o surgimento da “Nova Hollywood”, movimento em que jovens cineastas, bebendo na fonte da “Nouvelle Vague”, queriam realizar obras autorais. Com apenas 33 anos, Coppola era um destes garotos e ele brigou por cada milímetro do seu longa. Ele conseguiu filmar onde quis e bancou diversos atores. Já reparam quantos nasceram na Itália ou eram oriundos? Se não contei errado, 18. Na cabeça do diretor, esta familiaridade geraria credibilidade. Gerou.

Não é exagero dizer que alguns destes atores devem suas carreiras (ou aonde elas chegaram) ao diretor. Marlon Brando não era a primeira escolha para o papel. Quando interpretou Don Vito Corleone, ele já tinha um Oscar por “Sindicato de Ladrões” (1954), de Elia Kazan. Só que era considerado problemático e jovem demais para interpretar o pai daquela família. O ator ganhou a confiança do cineasta ao, entre outras coisas, fazer o teste para o papel com duas bolas de algodão na boca simulando bochechas de buldogue. Assim, Brando virou uma escolha pessoal de Coppola e mais uma batalha a ser vencida na realização de O Poderoso Chefão. As gravações não transcorreram sem problemas. Várias vezes, ele foi gravar sem ter decorado as falas e colas foram fixadas até em colegas de cenas. De qualquer forma, o ator venceu seu segundo prêmio da Academia e passou a ser considerado, por muita gente, como o maior do mundo entre seus pares, desbancando o britânico sir Lawrence Olivier, a escolha inicial do estúdio e que por uma questão de agenda declinou do convite.

Bicho de teatro, Al Pacino, um descendente de sicilianos, assim como Michael Corleone, era quase um estreante. Tinha feito apenas dois filmes. Antes dele, reza a lenda, nomes como Warren Beatty, Jack Nicholson, Dustin Hoffman, Robert Redford, Martin Sheen, Robert De Niro e, inclusive, James Caan, que acabaria vivendo o primogênito, Santino “Sonny” Corleone, foram considerados para o papel. A chance caiu em seu colo e foi aproveitada. Logo, é correto pensar que este personagem é responsável por quase tudo que o ator fez posteriormente. Indicado ao Oscar junto com os companheiros James Caan e Robert DuvallAl Pacino perdeu para Joel Grey, de “Cabaret” (1972). Contudo, provavelmente, sem esta experiência, ele não teria vivido Frank Serpico, em “Serpico” (1973), ou Sonny Wortzik, em “Um Dia de Cão” (1975); isto sem falar dos papéis nas continuações da trilogia. Ou seja: este é o filme que catapultou a carreira de um dos maiores ícones da história do cinema.

A realidade almejada por Mario Puzo e Francis Ford Coppola é o que confere força à ascensão e à queda da Família Corleone, ainda que esta última fique sempre no vislumbre, pois nem no filme de número três ela é vista. Há a queda e a desgraça de quase todos os personagens mais importantes, mas não da família em si enquanto ente criminoso. O jogo de poder do Corleones é jogado na sombra do “Sonho Americano”. Eles são imigrantes – no próximo texto abordarei isto com mais detalhes, já que é no segundo que vemos a chegada de Vito à América – e como tal, possuem poucas chances de ascender dentro dos ditames da lei. Don Vito construiu seu império a partir do comércio ilegal de bebida e comprando as autoridades. Ele é o homem que carrega políticos e juízes no bolso, como moedas, diz Don Emílio Barzini (Richard Conte). Só que isto não o impede de sonhar que Michael seja, no futuro, uma destas autoridades. Governador Corleone, balbucia o patriarca perto do ocaso de sua existência.


 

Se o “Sonho Americano” não é para todos, não ser excluído do “Destino Manifesto” – crença sobre o direito de expansão dos americanos – também não é tão simples. A Família Corleone expandiu o seu império a base de balas. Porém, logo no começo do filme, quando confrontado   por Amerigo Bonasera (Salvatore Corsitto), o dono de casa funerária que preferiu viver o “Sonho Americano” honestamente, Don Vito afirma que eles não são assassinos. Todavia, não é isto que vemos. As mortes podem não ser o primeiro recurso, mas são, sim, um meio completamente válido se não houver outro possível. Eles matam sempre que necessário, para que o destino não tome um rumo inesperado. Comparativamente, os Barzinis e os Tattaglias são chamados de assassinos infames e cafetões vulgares. Gente da pior espécie agindo feito animal. Logo, existiria uma ética que diferenciaria os Corleones deles. Não concordam? Vejamos.

O Poderoso Chefão é rico em cenas onde a violência é justificada pela tentativa de controlar o destino. Muito se fala da cena protagonizada pelo próprio Al Pacino em “Scarface” (1983), de Brian de Palma. “Say hello to my little friend” está entre as frases mais citadas do cinema e há uma plasticidade maravilhosa nela; só que a violência, ali, padece de certa gratuidade, diferente de quando Michael Corleone se oferece para acabar com Virgil Sollozzo (Al Lettieri) e o capitão Mark McCluskey (Sterling Hayden). Neste caso, o que está em jogo é a sobrevivência da família. Até ali, o caçula dos Corleones homens, um estudante de direito que lutara na Segunda Guerra e voltou com uma medalha, hesitara em colocar a mão na massa. Ajudara, sim, mas sempre sem se comprometer. Ao se oferecer para o serviço e, principalmente, ao pegar a arma que lhe fora deixada na caixa d´água da privada do banheiro de um restaurante, no bairro do Brooklyn, ele trilhará um caminho sem volta.

Esta passagem é outra inspirada em fatos reais. O personagem Michael Corleone é uma fusão de vários mafiosos. Ele é um pouco Sam “Momo” Giancana, o boss do Sindicato do Crime de Chicago que tinha como consigliere Murray Humphreys, um galês (como não associar com Tom Hagen, o consigliere teuto-irlandês?); é também Salvatore Bonnano, o filho de Joseph Bonnano que foi ser advogado antes de se envolver com o crime; mas é, antes de tudo, Charlie “Lucky” Luciano, o imperador da máfia. Em 1931, ele se reuniu com Joe Masseria em um restaurante e pediu licença para ir ao banheiro, igual ao filme, mas não voltou atirando, o serviço foi executado por capangas. Luciano tinha o rosto deformado devido a uma agressão sofrida quando era mais jovem. Já Michael carregaria para sempre, na face esquerda, a marca de uma agressão perpetrada pelo mesmo McCluskey que viria a matar.

O desfecho da primeira parte de O Poderoso Chefão não poderia ser outro. Com a morte do pai, o jovem don precisa mostrar que, apesar da pouca idade, é tão astuto quanto o antigo don. E mesmo neste caso, a violência não mexe suas engrenagens sem motivo. Ele está prestes a ser traído por Sal Tessio (Abe Vigoda), que despudoradamente vendeu sua alma. É matar ou morrer. No melhor desfecho de todos os tempos, em um ataque engenhosamente orquestrado, todos os obstáculos são sumariamente eliminados. A expansão final dos Corleones, pelo menos por agora, ocorre por meio desta ação simultânea enquanto um cândido e cínico Michael batiza seu sobrinho. Sons profanos, como os barulhos das balas e os gritos agudos da morte, se misturam com a cantilena sacra que ouvimos na igreja. Ele está definitivamente convencido de que tudo está sob controle, mas como veremos no segundo e no terceiro capítulo da trilogia, controlar o destino é algo quase impossível mesmo para o mais astuto dos homens.

Desliguem os celulares e excepcional diversão.

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Título original: The Godfather
Direção: Francis Ford Coppola
Produção: Albert S. Ruddy
Roteiro: Francis Ford Coppola, Mario Puzo
Elenco: Marlon Brando, Al Pacino, James Caan, John Cazale, Robert Duvall, Diane Keaton, Sterling Hayden, Richard Conte, Talia Shire, Al Lettieri
Distribuição: Paramount
Data de estreia: dom, 10/09/72
País: Estados Unidos
Gênero: drama
Ano de produção: 1972
Duração: 177 minutos
Classificação: 14 anos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN