BAÚ DO BLAH! | ‘O Poderoso Chefão II’ (1974)
Bruno Giacobbo
Eu terminei o texto de “O Poderoso Chefão” falando sobre os contrastes existentes entre o sacro e o profano. Esta escolha não foi aleatória. Ela tem uma razão que pode ser observada ao longo dos três filmes. Gangsteres de primeira viagem talvez não reparem, mas todos os capítulos desta saga começam e terminam da mesma forma. Vejamos. O filme um inicia com o casamento de Connie Corleone (Talia Shire) e fecha com as mortes de todos os inimigos de Michael (Al Pacino), naquele que pode ser considerado o mais poderoso desfecho de um longa-metragem já feito. A segunda parte, por sua vez, abre com a primeira comunhão de Anthony Vito Corleone, filho de Michael e Kay, e termina com as mortes de Freddo (John Cazale), Hyman Roth (Lee Strasberg) e Frank Pentangeli (Michael V. Gazzo). Já a conclusão da saga começa com um idoso Michael recebendo a comenda de São Sebastião e depois comemorando com uma grande festa familiar; e, finalmente, encerra com a eliminação dos homens que ousaram conspirar contra a Família Corleone e contra a figura do Papa.
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Tenho certeza que, neste momento, deve ter alguém lendo e lembrando: O Poderoso Chefão II (The Godfather: Part II) começa com uma cena de Vito Corleone, ainda pequeno, na Sicília, fugindo da morte certa nas mãos de Don Ciccio (Giuseppe Sillato). De fato, há este preâmbulo seguido de sua chegada à América. No entanto, além de ser emblematicamente muito mais importante para a mensagem que Francis Ford Coppola e Mario Puzo queriam transmitir, dramaturgicamente, é a cena da primeira comunhão que faz a história se desenvolver. Se na película um é possível observar uma ampla discussão sobre os significados, na teoria e na prática, do “Sonho Americano” e do “Destino Manifesto”, nesta ousada continuação, tida por muitos como superior ao primeiro filme, os realizadores se propõem a discutir, com uma acentuada riqueza de detalhes, a contradição existente entre o sacro e o profano no mundo dos criminosos de origem italiana. E, sim, eu considero Puzo tão realizador quanto Coppola, vide o que escrevi na edição do BAÚ DO BLAH em que falo de “Amor à Queima-Roupa”.
Os italianos estão entre os povos mais religiosos do mundo. Talvez estejam atrás somente dos poloneses. Se na Polônia a quantidade de fiéis está diretamente ligada ao papel desempenhado pela Igreja Católica durante os anos de ferro dos governos comunistas; na Itália há uma razão histórica bem mais antiga. Após receber a incumbência de ser a pedra fundamental da Igreja de Cristo, São Pedro foi para Roma e lá, de fato, fundou a Igreja Católica. Desde então, por ser a única comunidade ainda existente fundada por um apóstolo, é a sede do catolicismo, o país com o maior número de cardeais e o lugar para onde todos os caminhos da fé cristã convergem. Assim, o sentimento de cristandade, de fazer parte de algo maior, se espalhou por todos os italianos e, hoje, se encontra completamente enraizado. E praticamente nenhum italiano está imune a isto. Nem mesmo os mafiosos. E aí, sabem quando dizem que “Fulano acende uma vela para Deus e outra para o Diabo”? Estes são os gangsteres quando com uma mão fazem o sinal da cruz e com a outra apertam o gatilho.
A ligação com a questão sacra não é representada apenas pelas cerimonias religiosas que vemos a toda hora na trilogia; há ainda a ligação representada pelo poderoso simbolismo da família em suas variadas facetas. A importância que damos à família, como célula básica da sociedade ocidental, vem do cristianismo, da “Sagrada Família” (São José, Maria e Jesus Cristo). E aqui ela também é importante. Em 1901, o jovem Vito Andolini, que viria a ser rebatizado por um oficial da Ilha Ellis de Vito Corleone, chega à América e cresce ambicionando vingar a morte do pai, da mãe e do irmão Paolo. Já mais velho, quando é brilhantemente interpretado por Robert De Niro (reparem como ele consegue reproduzir a voz criada por Marlon Brando), Vito dá imenso valor à esposa e aos filhos pequenos. E, assim, o tempo todo somos lembrados de que não devemos ir contra os nossos: Vito para Sonny, Michael para Freddo, todos repetem este mantra. E nada disto impede que algo tão valioso seja conspurcado.
A primeira conspurcação ocorre no final do longa-metragem um, quando Michael ordena o assassinato de seu cunhado, Carlo Rizzi (Gianni Russo), pouco depois de batizar o filho deste. Ele acabara de repetir solenemente, uma a uma, as seguintes palavras ditas pelo padre: “Você renuncia ao Diabo?” “Renuncio”. A segunda, pelo menos aos olhos dos católicos e para a época em que se passa o filme dois, é o aborto de Kay, que não quer outro herdeiro Corleone. Por último, a terceira e mais grave conspurcação ocorre no finalzinho da película dois. Agora, é Freddo que paga por seus erros, morto com um tiro na nuca disparado por Al Neri (Richard Bright), pelo “pecado” de ter ido contra sua família. Trair sua família de sangue ou de adoção (para os que não sabem, grupos mafiosos são famílias informais, inclusive, com uma cerimônia de iniciação para os novos membros) é algo, sem dúvida alguma, bastante grave, todavia, nada que justifique a maneira como os problemas são resolvidos. Esta banalização só acentua o contraste entre o sagrado e o profano.
Em determinado momento, Michael diz que o gângster Hyman Roth, personagem inspirado em Meyer Lansky, sócio e amigo de Lucky Luciano, o trata como filho e sucessor. Acontece que tão pouco isto impede ambos de travarem uma caçada de gato e rato até que um caia morto. Aqui, é importante frisar o quão fenomenal era Lee Strasberg. Criador do “Método”, técnica de atuação que fez a cabeça de alunos famosos como Marlon Brando, Al Pacino, Robert de Niro e Dustin Hoffman, entre outros, ele não gostava de interpretar diante das câmeras. Por isto, participou de pouquíssimos longas. No entanto, quando aceitou participar de alguma produção, o resultado é o que vemos em O Poderoso Chefão II: mais ou menos como testemunhar a perfeição desabrochar diante dos nossos olhos. Suas cenas com Al são as minhas favoritas. Em um quarto de hotel, em Havana, capital de Cuba, Roth fala como aceitou resignado a morte de Moe Greene (claramente Bugsy Siegel) para depois exalar uma cólera contida. E é em outra cena entre os dois que ele diz: “Nós somos mais poderosos do que a indústria siderúrgica americana”, frase que Puzo não teve pudor algum de roubar do Lansky real.
Indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante junto com Robert De Niro e Michael V. Gazzo, Strasberg perdeu o prêmio para o primeiro. Todos mereciam e escolher um aqui era uma mera questão de preferência. Imagino que tenha sido uma votação bem apertada. O que favoreceu a vitória da jovem versão de Vito, certamente, foi o tempo de cena. De Niro participa de quase todas as cenas de flashback, o que dá, mais ou menos, um terço do longa-metragem. E por falar nestas passagens que mostram a formação e a criação da reputação da Família Corleone, se há um aspecto em que, inegavelmente, o capítulo dois da trilogia é superior aos demais, este é a montagem sob a responsabilidade de Peter Ziner, Barry Malkin e Richard Marks. O fato de a narrativa acontecer em duas linhas temporais diferentes que, lá pelas tantas, se encontram, mais precisamente quando um Michael adulto anuncia que se alistou no exército para lutar na Segunda Guerra, foi fundamental para este triunfo, já que tudo flui naturalmente. Aliás, esta é, de fato, a última tomada. Contudo, vale para ela, mais ou menos, o que escrevi em relação às primeiras tomadas do filme.
A imersão histórica da saga de Mário Puzo não passa somente pelos personagens inspirados em figuras reais. Acontecimentos inteiros são mostrados e não são necessariamente eventos que dizem respeito apenas a história dos Estados Unidos. No segundo capítulo da trilogia, como citei anteriormente, testemunhamos o encontro entre Michael Corleone e Hyman Roth, em Havana. Eles são os protagonistas de uma reunião de mafiosos que ocorre com a anuência do Governo de Cuba. É o último dia de 1958. Em seguida, na virada para 1959, ocorre a revolução que coloca Fidel no poder. Sim, o nome de Fidel é gritado por um manifestante, assim como o presidente americano é Dwight Einsenhower. Esta passagem, na realidade, é a fusão de duas verídicas. Em 1946, Charles “Lucky” Luciano e Meyer Lansky presidiram uma cúpula do crime organizado, no Hotel Nacional, o mais luxuoso da capital. Foi a partir deste encontro que a Máfia consolidou o seu poder na ilha. Quanto ao levante, este realmente aconteceu no dia 1º de janeiro de 1959. O que o autor fez foi juntar duas passagens em uma. Esta liberdade autoral, certamente, conferiu mais dramaticidade aos fatos.
Lembram que eu falei, no texto passado, que Marlon Brando se inspirou nos depoimentos de Frank Costello a um tal de Comitê Kefauver? Pois bem, esta comissão, instaurada em 1950, foi presidida pelo senador Estes Kefauver, do estado do Tennessee, e tinha como objetivo investigar a Máfia. Além do próprio Costello, gente graúda como Willie Moretti (aquele gângster que livrou Frank Sinatra do contrato desvantajoso) e Joe Adonis foi obrigada a depor no Senado Americano. No filme, assistimos aos testemunhos de Michael Corleone, de Frank Pentangeli e de Willi Cicci (Joe Spinell). O nome foi mantido, mas a balburdia que vemos na telona é digna de uma CPI brasileira, com Tom Hagen (Robert Duvall) clamando aos berros pela inocência de Michael. A diferença entre o Comitê Kefauver ficcional e o real é que o principal investigado consegue se safar com uma jogada de mestre digna dos Corleones.
O best-seller de Mário Puzo foi reproduzido quase inteiramente na íntegra nos frames de Francis Ford Coppola. Uma ou outra passagem ficaram de fora e eu, como fã, me concedo o direito de sentir falta delas. No entanto, no geral, foi uma excelente adaptação. Ao vencer seis Oscars, em 1975, todo mundo acreditou que O Poderoso Chefão II era a conclusão dourada da maior saga da história do cinema. A produção bisou o prêmio de melhor filme, vencido em 1973, finalmente consagrou seu diretor e reparou um erro crasso ao premiar Nino Rota e Carmine Coppola (pai do cineasta) por aquela que é uma das melhores trilhas já compostas. Será que alguém nunca ouviu “The Godfather Waltz” e “Speak Softy, Love”? Dezesseis anos depois, o terceiro capítulo foi lançado com um roteiro original. Há quem advogue que ele é muito mais fraco do que os anteriores. Discordo e, por um motivo especial, possuo um grande carinho por ele. Contudo, este é um assunto para o texto, o último desta trilogia crítica, em que discorrerei também sobre o desabrochar da personagem de Talia Shire.
Desliguem os celulares e excepcional diversão.
::: TRAILER
::: FICHA TÉCNICA
Título original: The Godfather: Part II
Direção: Francis Ford Coppola
Produção: Albert S. Ruddy
Roteiro: Francis Ford Coppola, Mario Puzo
Elenco: Marlon Brando, Al Pacino, James Caan, John Cazale, Robert Duvall, Diane Keaton, Sterling Hayden, Richard Conte, Talia Shire, Al Lettieri
Distribuição: Paramount
Data de estreia: sex, 14/02/75
País: Estados Unidos
Gênero: drama
Ano de produção: 1975
Duração: 177 minutos
Classificação: 14 anos