Sob o véu do humor, ‘Bela Vingança’ denuncia a cultura do estupro
Bruno Giacobbo
O papel principal deste filme estava, a princípio, destinado a Margot Robbie, uma das novas estrelas mais cobiçadas de Hollywood. Ela leu o roteiro, agradeceu e recusou. Só que o projeto não saía de sua cabeça. Tanto é que Robbie decidiu produzi-lo e convidou Carey Mulligan para estrelá-lo. No final das contas, o resultado é um sucesso de crítica e público. Já Mulligan está muito próxima de sua segunda indicação ao Oscar e, quem sabe, de sua primeira vitória.
A trama
Em Bela Vingança (Promising Young Woman), filme de estreia da roteirista Emerald Fennell como realizadora, acompanhamos a vida dupla de Cassandra Thomas (Mulligan). De dia, Cassie trabalha em uma cafeteria, um emprego sem muito futuro. De noite, ela se arruma toda e vai de bar em bar, fingindo que está bêbeda, atrás de homens dispostos a abusar de sua aparente condição de fragilidade. O que ela faz com eles? Inicialmente, não sabemos.
A vida de Cassie, no entanto, nem sempre foi assim. Em um passado não tão distante, ela foi um promissora estudante de medicina. Era o seu sonho, daí o título da obra no original: Promising Young Woman. Só que algo ocorreu lá atrás, nesse tempo que já passou, para que as coisas ficassem tão diferentes no presente. A protagonista tinha uma amiga, Nina, e aos poucos vamos tendo vislumbres dela e, assim, entendendo que o ocorrido se conecta diretamente com essa amizade e um eventual trauma.
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Sangue nos Olhos
Como o título em português entrega, Bela Vingança é a história de vingança, de uma mulher com sangue nos olhos. Uma das razões para Margot Robbie ter declinado do papel, sem dúvida alguma, passa pelo fato dela ter interpretado, anteriormente, personagens como Arlequina, vilã da DC, e Tonya Harding, a patinadora olímpica americana que conspirou contra a colega de esporte, Nancy Kerrigan.
Essas são também personagens com sangue nos olhos. E atores e atrizes, de uma maneira geral, temem ser rotulados por um tipo de papel. Eu tenho total convicção de que Robbie teria sido brilhante, mas Mulligan honrou toda a confiança depositada nela.
Estreia empolgante
A estreia de Emerald Fennell é o que chamamos de colocar os dois pés na porta e entrar com tudo. Há muitas formas de se contar uma história de vingança. Você pode filmar um enredo sanguinolento do tipo A Vingança de Jennifer (1978), um clássico deste subgênero, ou você pode, por exemplo, rodar uma trama dotada de bastante humor… ácido. A diretora-roteirista escolheu o segundo e se deu bem. Até nisso, parece, Robbie estava certa, pois tanto Aves de Rapina (2020) quanto Eu, Tonya (2017) investem no humor como escape para a violência latente.
Além da utilização do humor ácido, outro acerto é a opção de Fennell por um roteiro que foge de ideias pré-concebidas em tramas de vingança e aposta em dois clímaxes. Na verdade, um anti-clímax, a mais ou menos dez minutos dos créditos finais, e um clímax, em um dos desfechos mais engenhosos deste tipo de produção nos últimos tempos. Quase não dá tempo de ficar com raiva (ou inconformado) com o que seria um final, potencialmente, broxante. Humorista de ofício, Max Greenfield, em uma pequena ponta, justo nos clímaxes, com o seu jeito galhofeiro de ser, é um belo acréscimo a um elenco que já contava com Bo Burnham e Alfred Molina em estado de graça.
Cultura do estupro
Enfim, Bela Vingança, de Emerald Fennell, é uma das grandes obras realizadas por mulheres em um ano que o Oscar tem a chance de, finalmente, reconhecer o talento dessas profissionais. Debaixo do véu da vingança e do humor ácido, há uma grave denúncia contra todos os homens que ainda acham que uma mulher bêbada é uma mulher que merece ser estuprada. Necessitamos combater a cultura do estupro, custe o que custar. Na vida real, podemos começar educando direito as crianças que serão os adultos de amanhã. Só que essa é uma ação de longo prazo. Na ficção, Cassie opta pela via mais rápida e o resultado é o que vemos na telona (ou telinha). Fabuloso.
TRAILER
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