‘Como é o trabalho de influenciadores digitais?’ – com Issaaf Karhawi
Ultraverso Acadêmico
Na entrevista de hoje, o ULTRAVERSO ACADÊMICO vai discutir “como é o trabalho de influenciadores digitais” com a pesquisadora Issaaf Karhawi.
Doutora e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA, em São Paulo, Karhawi também é professora do Centro de Estudos Latino-Americano sobre Cultura e Comunicação (Celacc-USP); bem como pesquisadora em comunicação digital na Universidade de São Paulo. Sua tese de doutorado se transformou em livro, lançado em 2020, intitulado “De blogueira a influenciadora: etapas de profissionalização da blogosfera de moda brasileira”.
Além disso, Karhawi ainda é pós-doutoranda pesquisadora do Cultpop, do PPG em Ciências da Comunicação da Unisinos. Por fim, ainda pesquisa influenciadores digitais, metodologias de pesquisa e discurso. Enfim, confira a entrevista sobre como é o trabalho de influenciadores digitais com Issaaf Karhawi para o ULTRAVERSO ACADÊMICO!
ULTRAVERSO: Como podemos definir o que são influenciadores digitais?
Issaaf Karhawi: Essa primeira pergunta parece simples, mas ela revela a complexidade desse objeto de pesquisa. Se formos olhar para os influenciadores digitais a partir dos estudos de celebridades, eles podem ser considerados celebridades da internet ou microcelebridades, sujeitos imbuídos de fama e que ocupam espaços significativos no espectro de visibilidade – ou na mídia tradicional.
Se a conceituação partir das pesquisas sobre trabalho, influenciadores são trabalhadores de plataforma. As pesquisas do marketing definem influenciadores como agentes propulsores de e-WoM (electronic Word-of-Mouth, ou boca a boca digital) e, por isso, capazes de persuadir consumidores.
Nas pesquisas em comunicação digital, de onde parto, a ideia de influenciadores aparece ainda com os primeiros blogueiros nos anos 1990, mas ainda sem esse título. Chamados de formadores de opinião, eles eram justamente sujeitos capazes de construir comunidades de interesse ao redor de si e construir laços (fortes e fracos) baseados em valores como autoridade, popularidade e reputação. Em outras palavras, eram os influentes da rede.
Surgimento do termo ‘influenciador digital’
Mas o termo “influenciador digital” só surgiu no Brasil entre 2014 e 2015 como uma forma de nomear essas personalidades que impactavam diretamente no consumo material de seus leitores (nos blogs), espectadores (no YouTube) e seguidores (no Instagram). Trata-se de um nome de batismo do mercado publicitário que via o impacto dos blogueiros e youtubers nos processos de decisão de compra dos consumidores. A ideia de influência vem de uma concepção bastante literal, nesse momento.
Mas, mais diretamente, podemos definir influenciadores digitais como sujeitos que se apropriam das plataformas de redes sociais para produzir conteúdo com periodicidade, tematização e reputação – conferida por meio de processos de legitimação dos públicos. Sujeitos capazes de colocar discussões em circulação; impactar em decisões em relação ao estilo de vida, gostos e bens culturais daqueles que estão em sua rede. Também são capazes de amplificar ou suprimir discursos, além de, claro, “influenciar” no consumo de bens materiais.
O trabalho dos influencers
Agora, sobre o trabalho. Há dois caminhos para entender o trabalho dos influenciadores digitais. Um deles, o que discuto em meu livro, é aquele ligado ao mercado publicitário. O influenciador como mais um ator do ecossistema da mídia, um prestador de serviços ou, em certa medida, uma espécie de mídia, de espaço publicitário em que anúncios diversos podem ser alocados. Por anos inclusive, as pesquisas se dedicaram quase que exclusivamente a essa caracterização na tentativa de entender se os influenciadores eram, afinal, uma nova profissão, um novo jeito de se chegar ao star system, um garoto-propaganda 2.0 ou apenas um hobby nas redes.
Hoje, no entanto, passado o momento de mapeamento inicial, outras camadas dessa atividade foram sendo desveladas. E o que se revela é a plataformização do trabalho dos influenciadores digitais. As discussões sobre gestão algorítmica do trabalho, sujeição às plataformas – ou uberização, como popularmente se entende esse fenômeno – se alargaram e chegaram a outros profissionais – não apenas aqueles ligados a aplicativos como Uber e Ifood, mas os próprios influenciadores digitais.
Do anonimato para a grande mídia
É curioso acompanhar essa virada do mercado e da pesquisa. Para se ter uma ideia, em meu livro, acompanhei 52 blogueiras de moda entre 2014 e 2017 para entender como elas saíram do anonimato e amadorismo para um patamar profissional de atuação. Analisei o discurso das blogueiras sobre sua própria atividade profissional e o impacto das plataformas só aparece em um momento: quando elas deixam os blogs e passam a produzir conteúdo no Instagram. Antes disso, a sensação de “ser dona” de um www fortalecia o “discurso empreendedor” da atividade.
Mas, hoje, essas mesmas blogueiras relatam diariamente situações de shadowban, compartilham as dificuldades em atender todas as imposições de ritmo de publicação das plataformas ou, como brincam, atender às exigências de Mark Zuckerberg. Ou seja, a ingerência das plataformas sobre aquilo que os influenciadores postam e fazem em seus espaços está cada vez mais clara. Assim, filio-me aos pesquisadores que tratam o trabalho dos influenciadores digitais como trabalho de plataforma. O ideal originário de empreender digitalmente, de fugir da submissão a um chefe e trabalhar com mais autonomia e flexibilidade foi substituído e recontextualizado.
Autonomia?
Influenciadores digitais não são tão autônomos ou livres assim: influenciadores digitais trabalham na plataforma e para a plataforma. O chefe deixa mesmo de existir em carne e osso, mas passa a ser um chefe maquínico representado por um algoritmo que “exige” posts diários, reels semanais e um número desconhecido, mas sobre-humano, de stories ao longo do dia. Em plataformas de redes sociais, a nossa interação é insumo. Não apenas nossos dados são convertidos em mercadorias e vendidos a anunciantes, mas nossas interações, curtidas, postagens profissionais ou genuínas são o que sustenta a plataforma.
Influenciadores digitais são estruturas basilares para o funcionamento e manutenção das plataformas, mas são igualmente estruturados por elas. Em bom português: se não tiver influenciador postando todos os dias e usuários comentando e compartilhando memes de gatinhos, o que sobra das redes sociais? Isso mesmo, nada. Uma estrutura fantasma.
Quais são os principais motivos ou definições que levam um criador de conteúdo ao nível de influencer? Isso varia ou depende da plataforma que creator se insere?
Issaaf Karhawi: Essa questão é excelente porque me faz pensar em outra: o que diferencia um influenciador de um sujeito comum? Provavelmente, o número de seguidores, a visibilidade midiática, o trabalho profissional com marcas, a dedicação integral ao ofício e o retorno monetário da atividade.
Mas o que confere esses atributos de diferenciação, distinção nas redes? A posse de um perfil numa rede social, a publicação de posts e vídeos capazes de evidenciar certos valores ou habilidades que serão tidas como distintas, valiosas, relacionáveis, aspiracionais pelos seguidores.
Então, veja, trata-se de um processo aberto e “democrático”. A cultura da participação e o imperativo da visibilidade permitiram a emergência de um perfil profissional como o dos influenciadores digitais (ou creators ou criadores de conteúdo). E aí está a linha tênue entre ser ou não ser. O que é trabalho? Como definir passatempo? O que é apenas uma imposição por “presença digital” dos nossos tempos?
Ganhos monetários
E essa complexidade permite entender o trabalho dos influenciadores como trabalho de visibilidade, de acordo com Crystal Abidin, reconhecendo que todos estão (estamos) em diferentes níveis de um espectro de visibilidade digital e que a “gestão” disso permite ganhos monetários.
Também, como trabalho aspiracional, em consonância com Brooke Erin Duffy, que se refere a um investimento de tempo e energia – antes de qualquer tipo de retorno financeiro – numa produção de conteúdo constante e profissionalizada nas redes sociais na esperança de que se “chegue lá!”. Um novo tipo de precarização do trabalho? Um uso que emula as práticas dos influenciadores digitais, mas sem intenções comerciais? Acho que essas linhas são tênues.
O que é ser influente?
Mas há algo sempre indispensável: influência é resultado de complexas relações sociais. Não se trata apenas de um título. Ser alguém considerado influente é ser reconhecido pelos pares (seguidores) como tal. É passar por processos de legitimação que conferem crédito ao produtor de conteúdo. É receber o direito à palavra. E isso não acontece magicamente após se autointitular influenciador digital, mas nas relações dentro das redes.
Também, não há uma prescrição normativa de como passar por esses processos: eles decorrem das comunidades de interesse que se formam nas redes e nos valores ligados à visibilidade contemporânea – diversos, dinâmicos e distintos.
E além de todos esses pontos, há ainda o atravessamento das plataformas e o desenvolvimento de certa expertise que se refere aos usos possíveis e normas tácitas (ou não) das redes. E cada vez mais os produtores de conteúdo já iniciam com objetivos bastante claros, com motivações extrínsecas e com certo domínio da plataforma.
Jornalista x influencer
No mais, há um discurso intensificado pela pandemia do que “somos todos blogueirinhas!”. Aí a confusão é maior: um jornalista é influenciador digital? E um médico? Trata-se de um acúmulo de funções? Ou apenas um novo tipo de cartão de visitas profissional?
Para solucionar esse impasse conceitual, tenho entendido que o trabalho dos influenciadores tem começo, meio e fim nas redes sociais digitais. Enquanto outros profissionais como médicos, arquitetos, odontologistas ou professores, por exemplo, têm nas redes sociais uma ferramenta de divulgação do próprio trabalho, de projeção midiática.
Para eles, o “trabalho em si” não se encerra no digital (tampouco se dá ali), mas em outros espaços (no consultório médico ou na sala de aula). Mas, mesmo nesses moldes, ainda não fugimos da plataformização. Cada vez mais intrusivas, as plataformas têm impactado quase todas as práticas laborais do nosso tempo.
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Como podemos visualizar as especificidades da cada plataforma que eles criam?
Issaaf Karhawi: O primeiro grande impacto das plataformas na atividade dos influenciadores digitais é o formato do conteúdo. Por exemplo, um YouTuber costuma produzir vídeos que, por conta do desenho da plataforma, exigem um tipo diferente de atenção do usuário – mais focada e mais exclusiva. A relação com o tempo no YouTube é distinta.
Por sua vez, um influenciador do Instagram disputa atenção dos usuários com centenas de vídeos de 15 segundos que aparecem e desaparecem na mesma velocidade. Portanto, é de se imaginar que, ali, a produção de conteúdo valoriza outros aspectos. Apenas fazendo inferências: o Instagram acaba sendo um espaço de conteúdo mais “descartável”, pouco (ou nada) “buscável” ou “rankeável”, com mais apelo visual. Não à toa, o estereótipo da “blogueira ostentação” está sempre ligado ao Instagram. Enquanto, o estereótipo dos influenciadores de educação remete diretamente ao YouTube.
Habilidades técnicas e triviais
Costumo trabalhar com uma relação entre influenciadores digitais e a noção de formadores de opinião ou de sujeitos que detêm certas habilidades que os colocam em espaços de distinção – habilidades que podem ser tanto técnicas quanto mais “triviais”. Mas essa discussão se aplica apenas parcialmente ao TikTok, por exemplo.
Se pensarmos na rede, os grandes TikTokers são influentes não apenas porque acumulam certos tipos de capital (a priori) dentro de um campo ou porque democratizam discussões como formadores de opinião, mas porque dominam a plataforma. Há uma habilidade técnica conquistada dentro da plataforma. TikToker são influentes porque são ótimos em transições, porque entendem as trends do momento, porque reivindicam direitos autorais de suas danças, porque viralizam conteúdos diariamente. Então, sem dúvidas, a plataforma impacta diretamente no que se entende como influenciador digital.
Cada plataforma tem sua política
Além disso, cada plataforma apresenta políticas próprias: as chamadas diretrizes de comunidades. Em 2021, influenciadoras muçulmanas pró-Palestina sofreram penalidades algorítmicas do Instagram após publicações sobre a desapropriação de famílias palestinas por colonos israelenses em Sheikh Jarrah.
Os boicotes da plataforma foram diversos: as produtoras de conteúdo não conseguiam mais postar stories completos, nem abrir lives, tampouco serem encontradas na busca do Instagram. A plataforma respondeu à acusação de censura alegando falhas técnicas, enquanto o assunto “Palestina Livre” deixava de circular na rede e o trabalho das influenciadoras era claramente comprometido.
Por meio de regras opacas e sob a alegação de falhas técnicas, as plataformas também são capazes de ditar aquilo que pode ou não ser dito em seu espaço. E, enquanto isso, acreditamos que o ativismo digital será capaz de mudar nossa realidade… Mas qual ativismo é permitido nas redes? O Pró-Palestina, definitivamente, não é um deles.
Pensando nas especificidades do conteúdo do TikTok, quando levadas para outros lugares como Instagram ou Twitch, podem gerar estranheza. Como a economia de influência de cada plataforma se modifica a partir da criação e do trabalho dos creators?
Issaaf Karhawi: O trânsito de conteúdo pode gerar estranheza, mas também pode ser um ganho para o produtor de conteúdo. Em meu livro, identifiquei que algumas blogueiras de moda precursoras da blogosfera tinham formação acadêmica em diferentes na área da Comunicação. Era quase uma unanimidade: algumas eram publicitárias, outras jornalistas e designers. Esse ethos profissional imbuído de diversas habilidades e expertises permitiu que se tornassem vanguardistas do campo.
Numa outra lógica, aquilo que as blogueiras herdaram de seus campos de atuação originais foi convertido em uma espécie de “vantagem” no início dos blogs de moda no Brasil. Acredito que essa dinâmica se aplique também ao que temos hoje. Em certa medida, influenciadores que já têm uma produção de conteúdo consolidada em alguma plataforma podem transitar por outras com mais facilidade – caso isso seja uma escolha, claro.
E, também, essa expertise transmidiática é uma exigência tácita para a produção de conteúdo profissional nas plataformas de redes sociais. Deve-se acumular um conhecimento das funcionalidades das diversas plataformas das redes sociais digitais e, mais que isso, apreender as possibilidades de se construir narrativas transmidiáticas – histórias que caminham por múltiplas plataformas.
Além disso, o surgimento de novos aplicativos e redes – e mesmo a dúvida da permanência de outros – exige que os creators construam narrativas específicas e complementares acompanhando seu público por onde forem. E, sempre, conformando-se às imposições distintas de cada uma das plataformas.
Por fim, quais desdobramentos o estudo da influência pode ter daqui pra frente? E como começar a perceber conceitos e estudar sobre isso?
Acho que estamos em um momento importante para se discutir o trabalho dos influenciadores digitais, especialmente com a chegada da Creator Economy. Influenciadores estão pensando formas de desvincular seu trabalho dos grandes conglomerados midiáticos e, para isso, tem conjecturado uma economia própria em que se tornam CEOs de diferentes negócios, lançam produtos digitais ou bens materiais, investem em outras áreas ou “levam” seus públicos para espaços em que conseguem atuar sob suas próprias regras e controlar a distribuição do conteúdo.
Essa guinada é importante. Deixa-se de pensar influenciador apenas como ferramenta de marketing, ou celebridade efêmera, e entende-se que há mais em jogo. Estou confiante de que esse será um caminho produtivo de pesquisa daqui pra frente. Além disso, os conceitos para entender esses movimentos já estão aí no campo da comunicação, da economia política, da sociologia. Basta fazermos as relações certas.
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