CRÍTICA #2 | ‘A Forma da Água’ é bonito, divertido e comovente
Renan Almeida
Em meio à Guerra Fria, um laboratório de pesquisas dos Estados Unidos recebe uma criatura aquática humanoide. Na instalação governamental, trabalha uma faxineira muda chamada Elisa (Sally Hawkins), que vive sozinha e possui como únicos amigos sua colega de trabalho Zelda (Octavia Spencer) e seu vizinho Giles (Richard Jenkins).
CRÍTICA #1 | ‘A Forma da Água’ é uma declaração de amor ao cinema
Ao ser encarregada de limpar o local no qual a criatura é mantida, Elisa aos poucos se afeiçoa a ela, construindo uma relação de confiança e estima mútuas. Enquanto isso, as duas superpotências disputam secretamente o controle do ser fantástico, pois o estudo aprofundado de sua constituição pode trazer a vantagem científica e tecnológica tão almejada.
A Forma da Água se inicia com uma bela sequência na qual a câmera percorre um apartamento submerso, aos poucos revelando pequenos detalhes da vida da pessoa que o habita. É assim que conhecemos a protagonista, uma moça muda e solitária que divide seu tempo entre assistir a filmes clássicos com seu vizinho e o trabalho no órgão de pesquisas. Sua rotina é apresentada de maneira dinâmica e eficiente, por meio de um bom trabalho de edição que sincroniza a música aos movimentos da personagem e aos cortes de cena. Nesse sentido, o filme ainda se utiliza de match cuts extremamente elegantes em diferentes momentos da projeção. A sequência introdutória, inclusive, é eficiente ao estabelecer de imediato a relação especial da protagonista com a água.
Impecável do ponto de vista técnico, A Forma da Água conta com uma cinematografia inventiva ao criar contrastes temáticos, como no momento em que a família do Coronel Richard Strickland (Michael Shanon) é apresentada, com um esquema de iluminação e uma paleta de cores que parecem remeter diretamente àquelas propagandas de margarina que trazem famílias tradicionais perfeitas, com uma clara divisão sexual de papeis sociais. Como o espectador passa a conhecer a natureza violenta do coronel (que, em determinado ponto, se mostra capaz até de cometer abuso sexual), tal momento soa quase como uma ironia. Ao mesmo tempo, o estabelecimento da dinâmica de seu ambiente familiar contribui para ilustrar sua visão de mundo. Afinal, um homem com os valores de Strickland só poderia possuir uma família organizada daquela maneira. Sem mencionar, é claro, seu distanciamento com relação à esposa e aos filhos, indicativo de seu estado de espírito.
Além da ótima cinematografia, o design de produção cria ambientes fascinantes, seja o apartamento aconchegante de Giles, que serve de recanto inspirador para ele e para Elisa, o tanque com águas turvas e escuras no qual o homem anfíbio é mantido, com todo seu ar intimidador, ou os próprios corredores da instalação governamental. Toda a atmosfera dos anos 1960 é admiravelmente bem construída.
Não bastasse a dificuldade de trazer uma criatura fantástica para um universo realista, o roteiro ainda conta com uma complicação extra ao ter como protagonista uma personagem muda. Contudo, o texto do próprio diretor Guillermo Del Toro e de Vanessa Taylor contorna essas dificuldades com êxito. Aliada à excelente atuação de Sally Hawkins, Elisa é uma personagem adorável e bastante carismática. É comovente observar seu desespero ao tentar convencer Giles a resgatar a criatura do centro de pesquisas. Já a performance de Doug Jones fica quase completamente oculta pela caracterização do homem anfíbio, que, diga-se de passagem, é muito bem feita. Em especial, chama a atenção o movimento dos olhos do bicho ao piscar. Octavia Spencer está mais uma vez ótima, incorporando a divertida e leal Zelda. Michael Shannon exala a ameaça requerida por seu papel, tornando-se tão intimidador em certo instante que é até perdoável a improbabilidade de ele expulsar, com incrível facilidade, pessoas de seus próprios veículos e invadir casas alheias sem causar qualquer tentativa de reação. Richard Jenkins, por sua vez, compõe com sinceridade um homem velho, frustrado e acovardado, que, apesar disso, desperta a simpatia do espectador.
Ainda em relação ao roteiro, Del Toro e Taylor são perspicazes o suficiente para acrescentar humor à história sem prejudicar o drama. Além dos pequenos comentários sobre homofobia e racismo, e dos flashes em relação às tensões sociais do período, que enriquecem o universo do longa, alguns detalhes inseridos em cena ajudam a conferir complexidade e profundidade aos personagens, como na sequência em que o coronel Strickland é visto lendo um livro sobre pensamento positivo e isso se reflete na maneira com a qual ele lida com um problema específico. O espectador ainda é agraciado com a direção de Del Toro, que em alguns momentos cria metáforas visuais bastante oportunas.
Não obstante todas as suas qualidades, A Forma da Água conta com uma sequência de sonho/imaginação que soa como excesso. Depois de se encaminhar tão bem ao ato final, o longa não resiste a um breve flerte com a cafonice. Ademais, Del Toro tem enfrentado, nos últimos dias, acusações de plágio, que todos esperam serem esclarecidas nas semanas que restam até a premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Mas, no final das contas, o novo filme do cineasta mexicano é bonito, divertido e comovente, mesmo que, para resumir de maneira grosseira, ele conte a história de amor entre uma mulher muda e um homem-peixe.
::: TRAILER
::: FOTOS
::: FICHA TÉCNICA
Título original: The Shape of Water
Direção: Guillermo Del Toro
Elenco: Sally Hawkins, Octavia Spencer, Michael Stuhlbarg, Michael Shannon, Doug Jones
Distribuição: Fox
Data de estreia: qui, 11/01/18
País: Estados Unidos
Gênero: drama
Ano de produção: 2017