CRÍTICA #2 | ‘Invasão Zumbi’ é de apertar o coração
Bruno Giacobbo
Cinéfilos costumam ser exigentes em relação a tradução de títulos de filmes para o português. Pode parecer capricho, mas não é. Existem várias razões que justificam este tipo de comportamento. O primeiro é que, muitas vezes, a versão nacional é tosca e sem sentido. O romance infanto-juvenil “My Girl” (1991), estrelado por Macaulay Culkin e Anna Chlumsky, foi chamado por aqui de “Meu Primeiro Amor”. Até aí tudo bem. Quem viu o longa-metragem sabe que faz sentido. Sua continuação, lançada três anos depois, foi batizada de “Meu Primeiro Amor – 2”. Ou seja, de uma estupidez óbvia. No entanto, há exemplos mais problemáticos. O excepcional terror tailandês “Shutter” (2004) recebeu o nome, no Brasil, de “Espíritos – A Morte Está ao Seu Lado”, título que, a princípio, parece somente bobo, mas que, devido a particularidades do enredo, revela-se bastante equivocado. Assistam e descubram o porquê. Já o problema de Invasão Zumbi (Train to Busan), dirigido e roteirizado por Sang-ho Yeon, é de outra ordem: generalização e reducionismo. Um título tão genérico pode reduzi-lo, aos olhos do público, a mais uma película aleatória e sem conteúdo sobre mortos-vivos. Algo que, verdadeiramente, não corresponde a realidade da obra.
CRÍTICA | ‘Invasão Zumbi’ é uma obra que merece ser reconhecida e prestigiada
A história começa com um drama familiar. Na véspera do seu aniversário, a garotinha Soo-an (Soo-an Kim) tem um único desejo: comemorá-lo com sua mãe. O problema é que elas moram em cidades diferentes. A solução é simples. Pegar um trem e pronto. Em questão de horas estarão juntas. Só que o pai, Seok Woo (Gong Yoo), não quer deixá-la ir sozinha, sob a supervisão de uma comissária de bordo, como tantos pais fazem por aqui em aviões, e nem tem tempo de levá-la pessoalmente até lá. Ele é um homem de negócios ocupado, responsável pelos investimentos de outras pessoas e, por isto, relega a educação da filha à avó. Este descaso é retratado por uma cena onde ele a presenteia com um videogame igualzinho ao que ela tem em cima da cômoda. Contudo, após muito insistir, a menina o convence a levá-la. E aí, o que tinha tudo para ser uma viagem chata, repleta de monotonia, se transformará em uma jornada de transformação, não só do protagonista, mas de personagens que conheceremos posteriormente, como o casal Sang Hwa (Dong-seok Ma) e Sung Gyeong (Yu-mi Jung) ou o executivo Yong-Suk (Eui-sung Kim).
Em sua incursão inicial como diretor de um live-action, todos os seus trabalhos anteriores eram animações, incluindo “Seoul Station” (2016), que serve como prequel deste filme, mostrando um ataque zumbi a capital coreana, Sang-ho Yeon foi extremamente bem sucedido. Ele conseguiu contar uma história que funciona como terror, proporcionando ótimos sustos e momentos de enorme tensão, mas que não se resume apenas a isto. Por trás da trama de horror, há uma metáfora sobre a vida em sociedade, no mundo moderno, e sobre nosso individualismo diário, onde, diversas vezes, não conseguimos enxergar um palmo a nossa frente. O trem para Busan serve como uma reprodução do microcosmo que é a Terra: com primeira e segunda classes, simbolizando a divisão entre ricos e pobres (embora ninguém ali seja exatamente humilde); com idosos, adultos e jovens, cada um com suas próprias preocupações; com pessoas egoístas e altruístas; e assim por diante. Quando os zumbis atacam e este povo passa a correr perigo, a reação inicial, de quase todos, é agir individualmente. Um verdadeiro pega para capar, um salve-se quem puder. No entanto, com o tempo e o custo de algumas vidas, eles perceberão que se não agirem em equipe, não sobreviverão.
A história, que se difere de tudo o que é produzido no gênero pela inteligência do roteiro, por si só, funcionaria se os demais aspectos fílmicos fossem ruins? Provavelmente, não. Entretanto, não existe esta preocupação. Se, no início do ano, a crítica e o público saudaram “A Bruxa” (2015), de Robert Eggers, como um raro exemplo de longa de terror e arte, aqui, estamos diante de um novo exemplar. Tudo em sua concepção nos leva a fazer esta afirmação sem medo de ser feliz. A técnica de filmagem e a fotografia estão entre as melhores de 2016. Pelo menos, três cenas são memoráveis e, de algum jeito, impactantes, daquelas que ao evocarmos este filme durante uma discussão, instantaneamente, lembraremos delas: um frame onde o único ‘ator’ é um cervo; uma tomada aérea fabulosa mostrando uma perseguição ao trem; e um personagem visto em seus últimos momentos por meio de uma sombra no chão de cascalho. A gente sabe o que ocorreu, é chocante, mas o cineasta arranjou uma maneira de nos mostrar que o caos, no cinema, pode ser incrivelmente belo.
Invasão Zumbi conta, ainda, com atuações inspiradíssimas. A garota Soo-an é carismática e precocemente versátil. Ela rouba e põe no bolso várias cenas. Gong Yoo transmite credibilidade ao desempenhar o papel com o melhor arco dramático da trama: a transformação pela qual o seu personagem passa é crível. Todavia, ninguém se destaca mais do que Dong-seok Ma. De personal trainer do protagonista, na vida real, a ator, ele ganha os expectadores aos poucos. Quando nos damos conta, já estamos torcendo, vibrando, nos importando com o que acontecerá a ele e a sua família (a esposa está grávida). Assim, se o japonês “Creepy” (2016) tem o vilão mais icônico e a segunda melhor cena de abertura do ano; esta película sul-coreana tem o herói mais icônico e a melhor cena de encerramento do ano. É de apertar o coração. Viva o cinema asiático!
Desliguem os celulares e excelente diversão!
TRAILER:
FICHA TÉCNICA:
Título original: Train to busan
Distribuição: Paris
Data de estreia: qui, 29/12/16
País: Coreia do Sul
Gênero: ação
Ano de produção: 2016
Duração: 118 minutos
Classificação: a definir
Direção: Sang-Ho Yeon
Elenco: Yoo Gong, Dong-Seok Ma, Woo-Sik Choi