CRÍTICA #2 | ‘O Ódio que Você Semeia’ deixa o público sem fôlego e quase de pé
Bruno Giacobbo
Muitas são as coisas que podem levar uma pessoa a se mover e deixar a estagnação de lado: um trauma, uma tragédia, uma morte, um sonho, uma paixão e por aí vai. Na verdade, daria para passar o resto do dia elencando fatores motivadores e impulsionadores. No caso específico de Starr (Amandla Stenberg), este fator é o assassinato do seu melhor amigo, Khalil (Algee Smith), por um policial, diante dos seus olhos. Não acontece de forma instantânea ou imediata, mas esta atrocidade produz mudanças radicais no âmago da garota. Até ali, ela era apenas uma adolescente comum, com a particularidade de morar em um bairro periférico de uma grande cidade americana, habitado praticamente só por negros; e estudar em uma escola particular, frequentada quase totalmente só por brancos. Uma menina forçada a agir nos dois ambientes de maneiras bem diferentes para não ser rejeitada em nenhum deles.
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Baseado no best-seller homônimo de Angie Thomas, O ÓDIO QUE VOCÊ SEMEIA (The Hate U Give) começa com uma narração em off da protagonista, em que ela explica, tintim por tintim, esta ambiguidade comportamental e apresenta sua família. Starr vive com os pais, Maverick (Russell Hornsby) e Lisa (Regina Hall); e os irmãos, Seven (Lamar Johnson) e Sekani (TJ Wright). Logo em uma das primeiras cenas, vemos o pai obrigando os filhos a decorarem os dez mandamentos dos Panteras Negras (grupo de ativistas que, nos anos 60 e 70, se destacou na luta pelos direitos civis dos negros). Saber aquelas “leis” é um ponto de honra e uma garantia de sobrevivência em um mundo conturbado. Só que esta “aula” faz parte do passado. A cena é um flashback e, no presente, Maverick está mais tranquilo, quase na dele. Alguma coisa aconteceu neste interim e nós ainda não sabemos o que foi.
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Se o fator que fará a protagonista se mover é a morte de um amigo querido, o que faz Lisa querer deixar para trás a vizinhança na qual eles já estão enraizados, é, justamente, a segurança dos filhos e a chance de um futuro melhor distante da violência local, simbolizada por King (Anthony Mackie) e seus traficantes. Se, hoje, Starr, Seven e Sekani estudam em um colégio abastado, é porque, um dia, a avó deles teve o mesmo vislumbre. Assim, a mãe e o tio Carlos (Common) estudaram em uma escola parecida e puderam ascender socialmente. A prova disto é que ela trabalha em um hospital e ele é um policial. Esta ambição materna, coloquemos deste modo, é geradora de alguns embates com o marido, apesar de todo o amor que os une. O tempo passou, os anos voaram, as coisas mudaram, todavia, o coração paterno pressente que a violência longe daquelas cercanias pode ser ainda mais cruel.
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Ambição. O sentimento que move a mãe de Starr é o mesmo que move o longa-metragem de George Tillman Jr. Desde o Oscar 2017 e o movimento por mais espaço para profissionais negros na Indústria de Hollywood e nas grandes premiações cinematográficas, muitos são os filmes que tentam de forma tão ambiciosa abordar tantas questões relevantes. E pouquíssimos são os que conseguem. Aqui, o cineasta (que ainda não tinha nenhum grande sucesso em sua carreira) e a roteirista Audrey Wells (mais lembrada por “Sob o Sol da Toscana”, 2003) conseguiram, com uma roupagem bastante pop, entre outras coisas, retratar negros que vivem em guetos porque não acreditam na convivência pacífica com os brancos; negros que acreditam nesta convivência; brancos que se dizem não racistas e não são; e brancos que são, apesar do discurso contrário. Tudo isto sem cair na maldição dos estereótipos.
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Urgentíssimo e atualíssimo, o diálogo se dá com a realidade pungente e com obras recentes do cinema. É desafiador assistir à esta película e tentar não pensar no que ocorre todos os dias nas periferias das metrópoles dos Estados Unidos e do Brasil. Com “Ponto Cego”, de Carlos Lopes Estrada, lançado este ano, a conexão é imediata, pois ambos partem de situações semelhantes. Lá pelas tantas, quando um protesto pacífico se transforma em uma verdadeira batalha campal, é fácil lembrar de “Detroit em Rebelião” (2017), da laureada Kathryn Bigelow, e, assim, outros links podem ser tranquilamente feitos. A roupagem pop está no flerte descarado (e bem concebido) com tantos filmes adolescentes. Namorada de Chris (K.J. Apa), amiga de Hailey (Sabrina Carpenter) e Maya (Megan Lawless), Starr é uma das populares da escola e mostrar esta faceta não diminui em nada a importância da obra em questão.
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Com um crime no horizonte de sua história, dá para dizer que criminoso é o que estão fazendo com o elenco deste filme. Esnobados em todas as premiações que foram divulgadas até a estreia no Brasil (06/12), quase todos os atores estão fabulosos, a começar pela protagonista Amandla Stenberg. Com 20 anos e mais conhecida por sua participação na franquia “Jogos Vorazes”, ela mostra um talento a ser lapidado, mas que já brilha intensamente. Ela encarna bem a Starr I e II (as personalidades que é obrigada a adotar em casa e no colégio, lembram?), num trabalho de interpretação que chega às raias da sutileza, e explode de forma incandescente quando, enfim, fatos incontornáveis a obrigam a ser uma só, doa a quem doer, em todos os momentos da sua vida. Em um mundo regido pela meritocracia, justamente aquele que não é mostrado no longa, ela estaria sendo reconhecida e aplaudida por isto.
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O mesmo ocorre com o intérprete de Maverick, o pai de Starr, Russell Hornsby. Variadas são as semelhanças que seu personagem guarda com o Juan (Mahershala Ali), de “Moonlight: Sob a Luz do Luar” (2016). Só que com um diferencial importante, ao meu ver: com mais tempo de cena, o primeiro teve várias oportunidades, que o segundo não teve, para desenvolver todas as nuances que o papel lhe ofereceu. E ele aproveitou. É uma das melhores interpretações de atores coadjuvantes desta temporada, que, provavelmente, está sendo ignorada por causa das tais semelhanças. É difícil imaginar que a Academia vá premiar papéis bastante parecidos com somente dois anos de distância. Excelentes, também, estão Regina Hall e Lamar Johnson. Ela, presente em quase toda a obra e com uma ótima cena mãe-filha durante uma refeição; ele, do meio para frente, quando seu personagem ganha destaque.
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O ápice de O ÓDIO QUE VOCÊ SEMEIA se dá no último ato, onde, de forma até meio clichê, quase todos os personagens que importam para a história estão reunidos. É uma cena que começa já bastante tensa, mas que, à medida que vai se desenrolando, torna-se cada vez mais dramática, deixando o público sem fôlego e quase de pé. É um daqueles raros instantes em que se percebe que o diretor sabia o que estava fazendo e que gozava da total cumplicidade do seu grupo de atores. E se o mise en scene engendrado e ensaiado por George Tillman Jr. não fosse por si só suficientemente poderoso, aconteceu de Amandla Stenberg e Russell Hornsby estarem em absoluto estado de graça. É uma cena para ver e rever, para colocar no clipe que o Oscar exibe quando os postulantes são anunciados pelos apresentadores. Logo, é uma pena que, ao tudo indica, não haja a menor chance de isto ocorrer em 2019.
Desliguem os celulares e excepcional diversão
::: TRAILER
::: FICHA TÉCNICA
Título original: The Hate U Give
Direção: George Tillman Jr.
Elenco: Amandla Stenberg, Regina Hall, Russell Hornsby
Distribuição: Fox
Data de estreia: qui, 06/12/18
País: Estados Unidos
Gênero: drama
Ano de produção: 2018
Duração: 132 minutos
Classificação: 14 anos