CRÍTICA | ‘2 Outonos e 3 Invernos’ manipula, de maneira engenhosa, a linguagem cinematográfica
Larissa Bello
A produção francesa 2 OUTONOS E 3 INVERNOS dirigida por Sébastien Betbeder é de 2013, porém somente agora chega aos cinemas brasileiros. É estrelada pelo ator Vincent Macaigne, conhecido pelo seu jeito doce e voz rouca. Ele vive Arman, o personagem central e narrador de sua própria história. Essa é justamente a característica que mais chama atenção no filme, que apresenta uma narrativa quase literal, onde seus personagens descrevem suas ações e emoções através de offs, quase como uma leitura de um livro ou um roteiro de cinema.
Leia mais: CRÍTICA | ‘Intimidade Entre Estranhos’ segue por caminhos tortuosos e aposta na força do elenco
O filme é divido em pequenos capítulos, com títulos pertinentes a história que se segue. A primeira parte inicia com o outono de 2009, onde vemos Arman deitado em seu quarto e ouvimos o seu off se autodescrevendo. Utilizando a forma verbal da terceira pessoa, ele diz ser um jovem de 33 anos, solteiro e que não importa onde trabalha, pois damos importância demais à profissão das pessoas. O capítulo seguinte é sobre Amélie (Maud Wyler) que também tece sua autodescrição em terceira pessoa. Logo depois, o capítulo apresenta como título: “Algo tem que acontecer”. O que se assemelha com um manual de roteiro cinematográfico e traz uma certa metalinguagem à narrativa, uma vez que realmente algo acontece. Os dois personagens se esbarram no parque enquanto fazem seus exercícios de corrida.
Leia mais: CRÍTICA #2 | ‘O Ódio que Você Semeia’ deixa o público sem fôlego e quase de pé
Um recurso como esse poderia deixar 2 OUTONOS E 3 INVERNOS um pouco enfadonho, porém, isso não acontece. Essa manipulação da linguagem transforma o espectador em um confidente das histórias narradas pelos personagens, principalmente nos momentos em que ocorre a quebra da quarta parede, ou seja, quando o protagonista olha para a câmera e temos a sensação de estar falando somente com os espectadores, compartilhando um segredo para o público e não para os outros personagens em cena.
Leia mais: CRÍTICA | ‘Homem-Aranha no Aranhaverso’ é uma celebração à diversidade
O ritmo narrativo é proporcional à apresentação de seus personagens, que vão se somando à história em torno de Arman, que mesmo sendo ele o protagonista, todos ganham um peso muito bem distribuído dentro de seus contextos próprios. Apesar do filme ter essa linguagem original, a forma não se sobressai ao conteúdo. A engenhosidade do roteiro faz com que nos envolvamos nos acontecimentos de cada personagem, principalmente no viés romântico entre Arman e Amélie, que não ocorre logo de cara. Isso porque, nos é apresentado Benjamin (Bastien Bouillon), que é amigo de Arman da época da faculdade de Belas Artes e cuja história ganha um destaque devido a um fato trágico curioso que acontece na sua vida.
Leia mais: CRÍTICA | Filme sobre Maria Callas mostra intimidade da soprano mais aclamada da história
O título do filme já antecipa a elipse (passagem do tempo) no qual o tempo narrativo irá acontecer. E é exatamente através do recurso das autodescrições que percebemos esses momentos de transição temporal. Tanto que, Arman só irá reencontrar Amélie quase seis meses depois de quando se esbarraram pela primeira vez no parque.
Leia mais: CRÍTICA | ‘Tinta Bruta’ é um grito de resistência em uma cidade hostil
Mesmo com uma interpretação apática por parte de Maud Wyler, ainda mais tendo Vincet Macaigne como companheiro de cena, o roteiro consegue sustentar o romance entre os dois personagens e o relacionamento finalmente acontece.
Leia mais: CRÍTICA | Com ótimo trabalho de elenco, ‘Rasga Coração’ transmite verossimilhança com a vida real
Outro fator curioso são os momentos de autorreferência dentro da narrativa. Como por exemplo, o capítulo intitulado “Eugène Green e Judd Apatow”. Arman menciona que o primeiro filme que ele e Benjamin viram juntos em Paris foi “O Mundo dos Vivos” (Le Monde Vivant, 2003), de Eugène Green. O comentário sobre o filme de Green é claramente uma referência ao estilo de linguagem adotada por Betbeder, tanto que é inserido um trecho do filme Green para compreendermos melhor essa referência.
Leia mais: CRÍTICA | ‘Cadáver’ faz juz ao seu título nacional
Eugène Green é um cineasta nascido nos EUA, mas radicado na França. Seus filmes são pouco conhecidos no Brasil. Sua proposta é de um cinema autoral, cuja marca é enfatizar o texto de seus filmes através de um método “não interpretativo” dos atores, como se fosse um teatro feito por atores amadores e inexpressivos. Como diz Benjamin “o êxito dele é perturbador!” E essa também é a intenção de Betbeder ao optar por um estilo linguístico que se propõe a cutucar o espectador e tirá-lo do lugar comum quanto espectador.
Leia mais: CRÍTICA | Das lágrimas ao riso, ‘De Repente Uma Família’ prova que essencial mesmo é o amor
O cinema francês sempre procurou inovar a linguagem cinematográfica, vide a Nouvelle Vague, que pôs em prática diferentes maneiras de se fazer cinema, desde a formatação de um roteiro, até o estilo de montagem. E é sempre saudável assistir filmes que fogem de um certo padrão,principalmente do que é decretado pela indústria hollywoodiana. Afinal, o cinema não é só entretenimento, e sim uma expressão artística com infinitas possibilidades. Nesse quesito, 2 OUTONOS E 3 INVERNOS irá cativar completamente os amantes da sétima arte.
::: TRAILER
::: FICHA TÉCNICA
Título original: 2 automnes 3 hivers
Direção: Sébastien Betbeder
Roteiro: Sébastien Betbeder
Elenco: Vincent Macaigne, Maud Wyler, Bastien Bouillon
Distribuição: Fênix Filmes
Data de estreia: qui, 06/12/18
País: França
Gênero: comédia
Ano de produção: 2013
Duração: 93 minutos
Classificação: 14 anos