CRÍTICA | 2ª Temporada | ‘3%’ retorna mais consciente e enriquecida pelos vínculos e desejos mais profundos de seus personagens
Giovanna Landucci
Não dá para negar que 3% foi um marco na história de séries ambientadas em streaming por se tratar do primeiro seriado brasileiro produzido pela gigante Netflix. Embora conte com abordagens já vistas anteriormente, como, por exemplo, em “Black Mirror”, o programa conquistou o público a partir de um episódio piloto exibido no Youtube, resolveu arriscar e fazer a primeira temporada completa. Tivemos recentemente a oportunidade de ver os dez episódios deste segundo ano em primeira mão deixar nossa resenha crítica sobre o contexto geral sem abranger roteiro para não estragar a surpresa e trazer spoilers.
Em termos de história, 3% retorna exatamente como terminou. Com o casal fundador em uma ilha paradisíaca fazendo coletas no mar, estudando algo junto a uma bióloga e formatando como seria o mundo ideal do Processo. Os episódios da primeira temporada geraram criticas negativas por conta do visível baixo orçamento aplicado em cada episódio (cerca de R$ 10 milhões) e na atuação amadora do elenco. Mesmo assim, a série foi bem recebida nos EUA e se tornou a mais vista no país, assim como uma das mais populares da Netflix mundialmente.
A partir desse foco de críticas da primeira temporada, ressalto que, neste segundo ano, temos um elenco parecido e alguns novos personagens. Ou seja, em termos de desempenho dos atores, continuamos praticamente na mesma. Os espaços entre as falas são demarcados e muito lentos, dando assim uma impressão de falas decoradas não trazendo naturalidade. Alguns atores se destacam um pouco mais e têm uma desenvoltura melhor com relação às interpretações, até mesmo na gesticulação, pois, inclusive, muitos deles parecem robóticos. Mas já está bem melhor que na primeira temporada e, pelo visto, devido ao desfecho, em uma suposta terceira temporada, melhoraria gradativamente, já que da primeira para a segunda temporada houve avanços significativos.
Do ponto de vista de cenário, as instalações estão mais bem preparadas e os figurinos idem. Porém, ainda assim a visão de “favela” onde eles vivem parece um pouco forçada, assim como as situações no Maralto que envolvem tecnologia também. Em termos de luz e sombra, filtros e edição, houve uma melhora. Podemos dizer que o contraste entre os dois mundos está bem mais forte e os tons utilizados mais evidentes com o objetivo de tornar as imagens um pouco mais realistas.
3% segue dividindo seu foco entre o Continente, que é um lugar pobre e escasso em recursos naturais, e o Maralto, um lugar que tem abundância, claro e rico em oportunidades para 3% da população que anualmente participam de provas que desafiam a força física e a moralidade de cada um dos inscritos. A série em sua segunda temporada continua sendo uma tentativa de atingir o foco de sagas como “Jogos Vorazes”. Mas, do ponto de vista do diretor e dos roteiristas envolvidos, isso não parece ser um problema. O conceito não parece ser de inovação, mas sim de capacitação do Brasil como referência também na categoria, onde era praticamente desconhecido.
Há um processo natural de evolução de história, enredo e personagens nessa segunda temporada. Se antes o foco era unicamente nos jogos do chamado Processo, agora decidiu-se por adentrar na trama tratando sobre o que levou a divisão entre o Maralto e o Continente e retomar grande parte dos personagens que marcaram a narrativa anterior. Vamos ver mais temas sociais e políticos na trama como alienação, manipulações envolvendo hierarquias, revolução, entre outros aspectos importantes no curso. Enquanto na temporada passada era possível ver as diferentes visões de cada roteirista, nessa já não temos tanta discrepância, sendo um pouco mais leve e concatenada que o que foi anteriormente visto. Por isso, ponto positivo para os roteiristas que resolveram intensificar as características do texto, o que comparando, tornou a segunda temporada de 3% uma experiência mais movimentada e intensa e com foco no Processo de número 105 e nas intrigantes histórias por trás da escolha de cada personagem em fazer parte da Causa ou do Processo, dividindo mais ainda os dois mundos.
Quando os episódios resolvem voltar no tempo para esclarecer e situar certos detalhes sobre as situações dos personagens, eles ocorrem de maneira orgânica, dividindo a trama em três linhas de tempo bem demarcadas e bem posicionadas para que entendamos na visão de qual personagem estamos enxergando aquelas memórias. Mas ainda há superficialidade porque os textos estão divididos de forma teatral e ainda por cima temos situações em que expressões utilizadas – ou até mesmo palavrões – ficam desconexos e colocados de maneira forçada no contexto geral. E, neste caso, é lamentável um ator talentoso como João Miguel ser mal aproveitado na pele de um personagem caricato e limitado como Miguel, que é o presidente do Processo. Há ainda outros exemplos de desperdícios como Zezé Motta, Sergio Mamberti e Celso Frateschi, além do ator que faz o papel de Celso Frateschi jovem, que aparecem tão pouco e são tão subaproveitados, talvez por limite orçamentário. Para dar margem a novos talentos, como se fosse a “Malhação”, novela da Rede Globo de Televisão é até entendido o motivo das limitações de atuação, expressão, dicção, etc, mas acaba não sendo viável para o perfil que a Netflix quer atingir com essa trama, uma vez que recebeu críticas negativas com relação à primeira temporada fortemente nesse quesito.
De maneira geral, é possível dizer que 3% tem potencial e pode vir a se tornar um marco ainda maior para o audiovisual nacional, independente do ângulo que se façam as críticas e se olhe os resultados. Criada por Pedro Aguilera, a série brasileira da Netflix, ainda abrange o óbvio, mas trouxe acertos surpreendentes. O final poderia ser mais provocador e atraente, mas traz um desfecho coerente. Dessa forma, o seriado retorna para o segundo ano disponível para o público a partir de amanhã, dia 27 de abril, com uma narrativa simples, no entanto, mais consciente e enriquecida pelos vínculos e desejos mais profundos de seus personagens.
::: TRAILER
::: FOTOS
*FOTOS: Pedro Saad/Netflix/Divulgação
::: FICHA TÉCNICA
Criação: Pedro Aguilera
Elenco: João Miguel, Bianca Comparato, Michel Gomes
Gêneros: Drama, ficção científica
Classificação indicativa: 16 anos