CRÍTICA | ‘A Balada de Buster Scruggs’ (The Ballad of Buster Scruggs)

Lohan Lage Pignone

Todos os caminhos nos encaminham para o fatídico. O bom e velho oeste se expande na tela como palco mais que adequado para o festim, ou por que não dizer para a balada, do irredutível Thánatos, jovem alado que, tal como o pop, não poupa a ninguém. Eis a morte, companheira inseparável do homem, gravitando zombeteira neste western moderno que, sob a direção dos irmãos Coen (Onde os Fracos Não Têm Vez, Bravura Indômita), se sobressaiu como uma das mais belas surpresas cinematográficas de 2018.

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A Balada de Buster Scruggs (The Ballad of Buster Scruggs), ou, como eu diria numa visão particular, a balada da morte, foi lançado em novembro de 2018 no Brasil, e, desde então, consta no catálogo da Netflix. Conta com seis histórias (a que chamarei de atos), aparentemente, independentes, retiradas de um livro fictício, The Ballad of Buster Scruggs and Other Tales of the American Frontier, cuja capa, vista logo nos créditos iniciais do filme, remete a um tom fúnebre – a cabeça de um bovino sob uma árvore seca, morta. Seguindo a premissa desta crítica, este pode ser o livro da vida que, por sua vez, introduz a misteriosa e inexorável companhia da morte nos caminhos de seus personagens. Conforme as páginas são viradas, é vida que segue e morte que persegue. O primeiro episódio, ou primeiro ato, protagonizado por Tim Blake Nelson, apresenta Buster Scruggs, um pistoleiro cantor – o sabiá do velho oeste. “Se olhar, tem que jogar” e os Coen, já no prólogo, mandam um recado: “se abriu o livro da vida, é pra vivê-la, apesar dos riscos de perdê-la”. E, assumindo esses riscos de peito aberto, Buster Scruggs, talvez por representar a própria figura da morte, nos conduz ao jogo que se desenrolará ao longo de todo o book-movie.

O segundo ato de A Balada de Buster Scruggs, “Perto de Algodones”, se inicia com a chegada de um misterioso caubói (James Franco) a um banco. A imagem de um banco no deserto remete, instantaneamente, a uma sensação extrema de vulnerabilidade. É a própria imagem da tentação. Nada mais atrativo para um bandido, que não perde tempo em cumprir seu “ofício”. Mas como todo prazer resguarda a dor, ou toda tentação, se consumida, vem acompanhada de um castigo, o caubói da vez se vê numa luta tremenda para salvar a própria pele. E sua maior tentação passa ser a vida, em si, que, tal como uma “garota linda”, pulsa mais vibrante do que nunca na iminência da morte. Aqui, a direção dos Coen assume sua peculiar ironia em melhor forma, munida ainda de uma fotografia em tom sépia que conduz a uma resignação desta ironia tão bem entranhada.

Foto: Netflix / Divulgação

Liam Neeson encabeça o poético terceiro ato, “Vale Refeição”, e não, aqui ele não é o badass matador, lutador, atirador, como nos filmes que estrela de Jaume Collet-Serra. É um simples viajante responsável por Harrison (Harry Melling), um artista sem pernas e sem braços que se apresenta em diversas partes da região em seu monólogo. Aqui, a trama se desvia pela primeira vez do tom cartunesco e ganha contornos trágicos. A morte não é uma personagem, mas um significado, que, como em toda boa tragédia, dá as caras gradualmente; à medida que o público vai perdendo o interesse pelos números de Harrison, mutila-se a sua representatividade artística, e esta morte silente e dolorosa é sobremaneira mais simbólica do que a perda da própria vida. A trama ainda nos leva a refletir o quanto somos descartáveis; ou seja, morremos quando já não somos mais convenientes aos olhos de alguém.

Em “Cânion do Ouro”, o quarto ato, Tom Waits dá vida a um solitário e obstinado garimpeiro, que mergulha em um ambiente fabular, e, aqui, a fotografia de Bruno Delbonnel cria essa atmosfera com maestria, sobretudo no frame captado por entre os chifres do cervo enquanto ouve-se, off screen, a voz do velho garimpeiro se aproximando como intrusa ao bucólico lugar. A busca pelo ouro seria a busca pelo sentido da vida. Pra que se vive, e o que de mais valioso deixaremos às gerações posteriores? Aqui, explora-se a natureza em sua essência. Como quem a desafia, à caça das grandes respostas universais. E, como já poetizava Ana Cristina César, “eu não sabia que virar pelo avesso era uma experiência mortal”. Quando se procura pela verdade, a dor é inevitável… e a própria cova pode ser cavada.

Foto: Netflix / Divulgação

No quinto e penúltimo ato, “A Garota Nervosa”, Alice Longabaugh (Zoe Kazan) vai à busca de um novo destino e, ao longo de sua trajetória, imersa em um ambiente machista, encarando perdas e indecisões, ela conquista o coração de um dos líderes da caravana, Billy Knapp (Bill Heck). Mas a morte, a constante da trama, surge para desestruturar a variável do amor. E, no frigir dos ovos (uma bela sequência de batalha, por sinal), a ironia reside em algo que diziam os mais antigos, “se bater na cobra e não matá-la, ela volta pra dar o troco”. Involuntariamente, isso acontece, neste caso, não com uma cobra, mas com um cachorro. E o final surpreende. Como única ressalva a este ato, uma enxugada não seria nada mal, tendo se alongado desnecessariamente.

Talvez a mais fraca das histórias (devido ao teor cansativo dos diálogos), todavia, não menos importante no que diz respeito ao universo temático, “Restos Mortais” é o ato derradeiro de A Balada de Buster Scruggs e cumpre coerentemente o seu papel, apesar de maçante. Afinal, tomando como fio a mitologia grega novamente, Thánatos é encarregado de levar os mortos ao Hades; e os entrega aos cuidados de Caronte, barqueiro que leva as almas pelo rio Aqueronte. Aqui, talvez, o barco seja uma carruagem; Caronte, um dos passageiros que ocupam a carruagem e que dá as ordens; e a morte seria, enfim, o condutor que “nunca para”. Como se as personagens ali presentes representassem todas as vidas perdidas das histórias anteriores, a peça final deste mosaico se encaixa muito bem ao todo. E o faroeste se encerra, sombrio e sem respostas óbvias, tal qual a vida defrontando sua fiel parceira: a morte. O livro se fecha.

A Balada de Buster Scruggs possui, a meu ver, um fio narrativo claro e interessante, que interliga as histórias com proeza; destaca-se, ainda, pela fotografia e pela rubrica marcante dos irmãos Ethan e Joel Coen.

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Título Original: The Ballad of Buster Scruggs
Direção: Joel Coen, Ethan Coen
Elenco: Tim Blake Nelson, James Franco, Liam Neeson, Harry Melling, Zoe Kazan, e outros.
Roteiro: Joel Coen, Ethan Coen
Fotografia: Bruno Delbonnel
Trilha Sonora: Carter Burwell
País: EUA
Distribuição: Netflix
Gênero: Faroeste
Ano de Produção: 2018
Duração: 133 minutos
Classificação: 16 anos

Lohan Lage Pignone

Lohan Lage Pignone, 31, é nascido no Rio de Janeiro (RJ) e atualmente reside em Nova Friburgo (RJ). Graduado em Letras (Port./Lit.) pela Universidade Estácio de Sá e pós-graduado em Roteiro para Cinema e TV, pela UVA. Publicou, em 2011, o livro “Poesia é Isso” (Ed. Multifoco). Assinou o roteiro e dirigiu o documentário em curta-metragem “Terra Nova, Friburgo”. Formou-se em Direção (Cinema) pela AIC.
NAN