CRÍTICA | ‘A Glória e a Graça’ vai além da questão transgênero
Bianca Moreira
Se por muito tempo, em diversos lugares do mundo, certas práticas sexuais foram consideradas desviantes, criminosas ou patológicas, hoje, essa percepção mudou. A sexualidade humana passa a ser vista como uma possibilidade legítima de cada um, independente do sexo biológico que nascemos. A identidade de gênero é uma expressão da liberdade individual, mas a violência e a intolerância contra a diversidade sexual e de gênero continuam presentes nos nossos dias e é uma questão de ordem pública e política. E esse é um dos principais temas que compõem o mais recente filme de Flávio Ramos Tambellini, que possui uma mulher transgênero como uma de suas personagens principais.
“A Glória e a Graça” narra a história de uma mãe solteira que ao ser diagnostica com aneurisma cerebral decide reatar o contato com seu irmão, Luiz Carlos, na tentativa de convencê-lo a cuidar de seus dois filhos, Papoula e Moreno. Quando Graça encontra o irmão descobre que ele tornou-se uma mulher, não se trata mais de Luiz Carlos e sim de Glória.
Glória é uma mulher muito bem sucedida, dona do seu próprio restaurante, culta e viajada. Tambellini coloca uma pessoa que pertence a um grupo que é oprimido, marginalizado, excluído e colocado de maneira secundária em todos os setores sociais, ocupando lugares de grande importância, o que infelizmente está muito longe de ser nossa realidade.
Muitos dos diálogos construídos dentro da trama, que por vezes soam didáticos demais, servem para desmascarar muitos estereótipos. Glória é uma mulher transgênero e nem por isso deseja transformar seu órgão sexual, o filme nos traz uma perspectiva muito interessante sobre o tema, a de que a transgeneridade se expressa de modo diverso em casa pessoa.
Glória é personagem de Carolina Ferraz. A atriz engordou dez quilos, usou prótese dentária e uma peruca para viver a personagem, o que fez com maestria.
Assim como todo filme que possui personagens transgêneros que não são interpretadas por atores transgêneros, o filme foi alvo de crítica ferrenha. É uma pena o assunto da representatividade trans no cinema vir à tona somente quando isso acontece. Um ator tem a capacidade de interpretar qualquer papel, independente do fato da realidade do personagem corresponder ou não a do artista que irá interpretá-lo. Paulo Gustavo interpretou uma mulher em “Minha mãe é uma peça” e Cate Blanchett fez Bob Dylan em “Não Estou lá”, sem que isso se tornasse prejudicial a essas películas.
A falta de representatividade trans não se encontra somente no cinema, mas em todos os campos da nossa sociedade. Passou da hora de termos atores e atrizes transexuais atuando no cinema, no teatro e nas telenovelas, mas não somente nos papéis de personagens transexuais, mas também de homens e mulheres. Devem, acima de tudo, ser tratados como qualquer outro artista cisgênero para que possam desenvolver suas potencialidades em todos os campos da representação.
“A Glória e a Graça” vai muito do debate da questão trans, é um filme que fala sobretudo da solidão das mulheres. Graça é a personificação de todas as mulheres que tiveram que criar seus filhos sozinhas; de todas àquelas que não tem ninguém para contar além de si mesmas; das que levam uma vida solitária por ser ‘difícil conseguir um parceiro que aceitem seus filhos’ e das que sabem que mesmo diante do leito da morte não podem contar com os pais de seus filhos. Enquanto Glória é o reflexo daquelas que oprimem sua transgeneridade na infância; das que enfrentam um rolo compressor na adolescência ao se assumir; das que possuem uma existência clandestina e das que dificilmente serão assumidas por algum homem cisgênero.
FICHA TÉCNICA