CRÍTICA | ‘A Rota Selvagem’ retrata a trajetória do amadurecimento
Giovanna Landucci
Um monge e seu discípulo em direção a um mosteiro onde permaneceriam por um ano, procuraram um lugar onde pudessem pernoitar pois o caminho era longo. Logo adiante avistaram uma casinha isolada, simples e rústica, onde morava uma família muito pobre. O monge pediu à família um lugar para dormir e o dono da casa, ofereceu lugar, mas se desculpou por não ter cama nem nenhum tipo de conforto, apenas um chão forrado de palha. Na manhã seguinte, no café da manhã havia apenas um pouco de leite, queijo e um mingau ralo e o dono da casa se desculpou novamente por não poder oferecer uma refeição melhor. O monge então perguntou ao dono da casa de onde elas tiravam o sustento, que responde: “Ah, temos aqui atrás da casa uma vaquinha milagrosa. Ela nos dá muito leite todos os dias e, com isso, conseguimos fazer queijo, coalhada e mingau. E, dessa forma, vamos sobrevivendo”. Ao iniciar sua caminhada, o monge deu meia-volta contornando a casa e soltou a vaquinha do pasto. Levou-a até o precipício e, então, atirou o animal lá de cima. O discípulo fica impressionado com a atitude, mas seguem viagem.
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Passado um ano, o monge e seu discípulo resolveram retornar à cidade e, para isso, teriam que percorrer o mesmo caminho por onde vieram. Resolveram procurar um lugar para passar a noite. Foram, então, em direção à casinha rústica da família que os hospedara antes. Chegando lá, viram que o lugar estava diferente. A casa da qual lembravam não existia mais. No lugar, um belo casarão, bem pintado e decorado juntamente com diversas carroças. Chamaram pelo dono da casa e perceberam que era o mesmo homem de antes, porém, estava mais bem nutrido, feliz e suas roupas não eram os trapos de antes. Acolheu os monges com um largo sorriso e ofereceu-lhes um quarto para hospedagem e um café da manhã no dia seguinte que demonstravam abundância. O monge, então, fez a mesma pergunta de um ano atrás e o dono do, agora, casarão respondeu que ocorreu uma tragédia há um ano. A vaquinha leiteira havia se soltado do pasto e caído no precipício. Então, sob grande aflição, viram-se obrigados a procurar outras formas de se manterem. Assim, aprenderam a plantar e cultivar diversas frutas e hortaliças, começaram a produzir para comercializar e assumem ter uma vida melhor que antes.
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Você deve estar se perguntando o porquê dessa longa introdução, certo? O filme de Andrew Haigh, A Rota Selvagem (Lean On Pete), baseado em um livro de Will Vlautin, retrata a sobrevivência de um garoto de apenas 16 anos que se vê em meio a conflitos e dramas que ninguém deveria passar. A vaca pode ser trocada no filme pela figura do cavalo que representa, para ele, a esperança de seu caminho e a vontade de prosseguir para conquistar seus objetivos. Charley Thompson (Charlie Plummer) é um garoto que sonha com estabilidade. Filho de pai solteiro, pois sua mãe os abandonou quando pequeno, vive mudando de cidade, porém, quando se estabelecem em Portland, consegue um emprego de assistente de treinador de cavalos de corrida e começa a fazer pequenas viagens com o técnico e o animal na caçamba do caminhão.
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Bonnie (Chloë Sevigny), uma jóquei feminina, se junta a eles nas viagens e pede ao garoto que não se apegue ao bicho, pois cavalos de corrida estão destinados a morrer por uma lesão ou por ficarem velhos. No entanto, Charley se apaixona por um velho quadrúpede de seu patrão chamado Lean On Pete. Ao descobrir que o animal está em risco, a trama inicia seu ponto de partida. O garoto decide tomar medidas extremas para salvar o animal, que toma a figura e o lugar de um amigo. Del (Steve Buscemi), seu patrão, é um vilão aos olhos de uma criança, visto que seu cavalo sofre abusos referentes aos tratos de corridas constantes, mas que podemos ver como um antagonista.
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O que parece ser uma trama sobre a amizade entre o menino e o cavalo acaba tomando outro rumo, e através de reviravoltas, demonstra um grande peso dramático com o mote do velho ditado “a esperança é a última que morre”. Em certa cena, há um comparativo entre a vida de dois personagens que sobrevivem de maneiras diferentes. Uma delas se encontra presa na barra da calça do avô e se submete a uma série de situações de maus-tratos, mas que não tem para onde ir. O outro, o garoto que também não tem o que fazer, porém, mesmo assim, segue em frente apesar dos acontecimentos extremos de seu caminho.
Algo que chama bastante a atenção em A Rota Selvagem são as paisagens naturais e rústicas e como a fotografia foi elaborada de uma maneira melancólica, caindo perfeitamente bem com a trama retratada. Uma dessas cenas é feita em um lago, onde o menino e o cavalo param para beber água e tomar banho. Essa tomada se sobrepõe ao próximo take através de transparências, que criam uma elipse muito bem construída e uma cena mágica.
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Durante todo o filme, não há alívio cômico ao drama estabelecido, somente os diálogos iniciais com o pai que trazem ar de graça e algumas cenas com coadjuvantes. O roteiro todo, porém, traz uma história carregada de eventos traumáticos e que deixam alguns questionamentos ao espectador: ele vai conseguir? Será que o destino do cavalo já estava mesmo traçado? E o conto da vaca que iniciou essa resenha faz a analogia com a vida onde há momentos em que se perde tudo para amadurecer e crescer. Essa é a real mensagem de um longa repleto de situações de resistência, resiliência e sobrevivência, mas sem tirar o abstrato que obras artísticas, principalmente as adaptadas de livros, costumam trazer.
A Rota Selvagem está sendo exibido na 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e, recentemente, foi premiada no Festival de Veneza e concorreu ao Leão de Ouro. Veja os horários das sessões.
*Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
::: TRAILER
::: FICHA TÉCNICA
Título original: Lean on Pete
Direção: Andrew Haigh
Elenco: Charlie Plummer, Amy Seimetz, Travis Fimmel
Distribuição: Diamond Films
Data de estreia: qui, 15/11/18
País: Estados Unidos
Gênero: aventura
Ano de produção: 2018
Duração: 121 minutos
Classificação: 12 anos