CRÍTICA | ‘Afterimage’, o último filme de Andrzej Wajda, é imperdível
Tatiana Reuter
Qual é a importância da arte para a cultura? Ela molda nosso pensamento? Dá forma ao que imaginamos? Provoca sensações? Quando vemos uma escultura, um quadro, ouvimos uma música, vamos ao cinema… o que esperamos, o que queremos? O que cada expressão artística causa em nós? E qual é, necessariamente, sua relevância para nós enquanto indivíduos e em sociedade? No último filme de Andrzej Wajda sobre a vida de Wladyslaw Strzeminski, Afterimage, saímos com essas questões e algumas respostas a outras.
Em meio ao caos político e econômico que vivemos – ao menos no Brasil – não parece haver espaço para discussões sobre arte e suas manifestações em nosso dia a dia. Não há também, desde a ditadura, uma força política que restrinja qualquer tipo de manifestação artística de qualquer teor ou forma diretamente – à exceção de Dória em São Paulo. Não se percebe a arte como uma forma perniciosa ou entrave à vida política como um todo, como participação social ou funcionamento da máquina estatal. Nem sempre foi assim e não é assim em grande parte do planeta, a História de regimes anteriores aqui e no mundo está aí para provar, e o que Wajda traz é o reflexo disso no governo Stalinista, no longo regime socialista da União Soviética, mais precisamente, na Polônia, em Lodz.
Wladyslaw Strzeminski foi um artista plástico, um pintor do início do século vinte, contribuidor fundamental ao modernismo, teórico e prático. O que vemos na tela, interpretado por Boguslaw Linda é um brilhante professor da escola de Belas Artes de Lodz, feliz por desenvolver o pensamento sobre a nossa percepção da arte, ao indicar que o que fica em nós após perceber uma obra de arte é o que conseguimos interpretar dela a partir de nossos conhecimentos – só conseguimos realmente ver o que compreendemos. Este homem gosta de seu trabalho, é um artista ativo, é um professor e também um deficiente que não aceita ser reconhecido como tal, Strzeminski não tem um braço e uma perna. O que deixaria qualquer pessoa limitada, para ele não parece incomodar além do óbvio – ele vive só, recebendo a visita ocasional de sua filha que o ajuda a manter a casa em ordem junto com uma diarista.
Strzeminski está sempre cercado de seus alunos, mas o cerco Stalinista se fecha sobre ele, pretendendo que se una ao pensamento da arte enquanto função, que reforce o sentimento de classe e extinga aquele do indivíduo, da reflexão, do pensamento crítico. Em um tempo em que as ideologias eram de grande relevância e faziam a diferença no comportamento social, qualquer entrave ao governo precisava ser combatido a ferro e fogo, ser estraçalhado, dizimado.
O que entendemos deste Afterimage se conjuga com as próprias pinceladas da teoria artística do protagonista e os efeitos da defesa da arte em sua vida. A consequência política de uma oposição é seu estrangulamento, é a provocação da invisibilidade sob todo e qualquer tipo de coerção possível. Wajda nos impõe uma tragédia cuja construção nos impele a sempre tentar buscar – junto ao protagonista e seus alunos – uma saída a qualquer custo; passamos a duração com uma sensação de inevitabilidade, sem querer encarar as prováveis consequências daquele dilema.
A força deste pensamento soviético, da abolição do eu para a manutenção do nós, parece muito mais uma ficção para o pensamento ocidental do que a biografia que assistimos. A massificação da propaganda socialista soviética alcançou e dominou seus cidadãos quase como uma doença – que se entenda bem: a teoria não era ruim, o pensamento para o bem coletivo deveria ser aplicado – o problema está na extinção do indivíduo, no desequilíbrio da balança, no fim de qualquer oposição. Enquanto o filme de ficção ilustra histórias reais com o brilho da livre interpretação de uma história real, temos o alívio narrativo de uma possível fantasia. Mas, ao buscarmos referências daquele modo de vida – e aí trago a ucraniana Svetlana Aleksiévitch em seus dois livros sobre a cultura, cotidiano e vida na União Soviética, O fim do homem soviético e A guerra não tem rosto de mulher – vemos a força desse pensamento, o sucesso da propaganda ideológica e passamos a entender mais profundamente a resistência de Strzeminski e as consequências sociais e individuais ao abraçar um ponto de vista sem antes refletir sobre ele. Entendemos então o quão precisa – quase à perfeição – foi esta interpretação de Wajda.
Este foi o último filme do aclamado diretor que morreu em 2016, um presente e uma tristeza por não tê-lo mais entre nós. Um artista que sempre lutou pela liberdade e democracia e expôs as repressões dos regimes totalitários na Polônia e seu posicionamento político em suas obras, ampliando a percepção de seu público para além de seu país, traduzindo em arte questões íntimas e sociais, de um cinema que soube ser engajado, autoral e, ainda assim, interessante. Wajda nos deixa com este candidato ao último Oscar de filme estrangeiro, um grande filme, cuja percepção plena nos chega aos poucos, nos faz questionar a função do artista e da arte, suas importâncias para a cultura e seus impactos na sociedade. Imperdível.
::: TRAILER
::: FOTOS
::: FICHA TÉCNICA
Título original: Powidoki
Direção: Andrzej Wajda
Roteiro: Andrzej Mularczyk, Andrzej Wajda
Elenco: Adrian Zaremba, Aleksander Fabisiak, Aleksandra Justa, Anna Grzeszczak, Anna Majcher, Barbara Wypych, Boguslaw Linda, Bronislawa Zamachowska, Danuta Borsuk, Dominika Kluzniak, Dorota Kolak, Filip Gurlacz, Henryk Niebudek, Irena Melcer, Izabela Dabrowska, Krzysztof Pieczynski, Magdalena Kuta, Mariusz Bonaszewski, Mateusz Bieryt, Mateusz Rusin, Mateusz Rzezniczak, Paulina Galazka, Szymon Bobrowski, Tomasz Chodorowski, Tomasz Wlosok, Zofia Wichlacz
Gênero: Biografia
Produção: Michal Kwiecinski
Fotografia: Pawel Edelman
Montador: Grazyna Gradon
Trilha Sonora: Andrzej Panufnik
Duração: 98 min.
Ano: 2016
País: Polônia
Cor: Colorido
Estreia: 17/08/2017 (Brasil)
Distribuidora: Imovision
Estúdio: Akson Studio / NINA / PISF / Telewizja Polska (TVP) / Tumult Foundation
Classificação: 12 anos