CRÍTICA | Brasileiro ‘As Boas Maneiras’ dá gosto e orgulho

Bruno Giacobbo

Falar do trabalho de Marco Dutra e Juliana Rojas, para o grande público, não é uma tarefa tão simples. Cineastas jovens, meio que eles pegaram para si a missão de desafiar o sistema. Em tese, seria bem mais fácil se juntar a este e realizar filmes de apelo comercial que rezam pela cartilha das comédias televisivas. No entanto, não era isto que eles queriam. A opção foi pelo cinema de gênero, especificamente, o de terror. Aí, vocês, em casa, vão dizer que José Mojica Marins desbravou este campo há muito mais tempo. Sim, é verdade. Só que os longas da dupla paulistana, egressa das salas de aulas na Universidade do Estado de São Paulo (USP), nada tem a ver com as películas do lendário Zé do Caixão. Porém, poucas semelhanças guardam também com obras modernas, realizadas nos Estados Unidos e alguns países da Ásia. Estes diretores brasileiros possuem uma marca própria e bastante autoral.

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As Boas Maneiras, vencedor do Prêmio do Júri no prestigioso Festival de Locarno, na Suíça, é um filme de lobisomem que flui de um modo único. Ana (Marjorie Estiano) está prestes a dar à luz ao seu primeiro filho. Mãe solteira, moradora de São Paulo, ela precisa de ajuda. Após uma série de entrevistas, conhece Clara (Isabel Zuaa), uma ex-estudante de enfermagem que tem como experiência profissional somente o fato de ter cuidado da avó, quando esta estava no leito de morte. Muito pouco se comparado ao currículo da candidata anterior, com quem ela cruza na sala da futura patroa. Entretanto, durante a conversa, Ana passa mal e Clara é de uma presteza impressionante. Assim, surge uma conexão imediata entre as mulheres e ignorando o bom senso que se deve ter na hora de contratar um estranho, firmam uma parceria profissional e tal conexão, com o tempo, se transforma em uma intimidade delicada.

Escrito por Dutra e Rojas, a partir de um sonho que ele teve, o longa-metragem não segue o formato dos roteiros convencionais. Não há somente uma história aqui. São, na verdade, duas. Para efeitos de comparação, facilitando o entendimento de quem ainda vai assistir, o melhor exemplo possível é o filme “Garota Exemplar” (2014), de David Fincher, ou a novela “A Favorita” (2008), de João Emanuel Carneiro. Vocês se recordam que no meio destas duas dramaturgias existe uma quebra de roteiro e, de repente, para a surpresa geral, a história toma um rumo totalmente inesperado? É o que ocorre, incluindo o fato de uma grande surpresa envolvendo um dos personagens centrais. Desta forma, encerra-se um ciclo fílmico com começo, meio e fim, e inicia-se outro igualmente completo.

No exato momento desta virada, eu já estava completamente arrebatado. Se o primeiro ato, protagonizado por Ana e Clara, arranca atuações soberbas de suas intérpretes, a segunda, para mim, até ontem, uma ilustre desconhecida que agora reluz como uma versão tupiniquim de Lupita Nyong’o, a metade final traz outra revelação: o menino Miguel Lobo, na pele, literalmente, do pequeno lobisomem. Expressivo enquanto humano, o ator mirim é ainda mais carismático quando transformado, captando todas as luzes dos holofotes e da lua cheia, claro. E não pensem que por se tratar de cinema nacional os efeitos especiais são toscos. Não são. O negócio é coisa de gringo, artigo de luxo para Hans Donner nenhum colocar defeito. Em meu primeiro contato com a criatura, fiquei de boca aberta. Deu gosto e orgulho.

A São Paulo retratada pelos cineastas é uma cidade de fábula. Se parece com a metrópole que conhecemos tão bem, inclusive, com tomadas da Ponte Estaiada que cruza o rio Pinheiros, mas há uma atmosfera toda mística. Este misticismo, realçado pela deslumbrante fotografia do português Rui Poças, permite livres concessões à realidade. Logo, nada no filme é engessado. E nem poderia ser, já que se trata uma trama baseada em uma das lendas mais populares do Brasil. Do mesmo jeito que Juliana Rojas, em “Sinfonia da Necrópole” (2016), mostrou a rotina de um cemitério como metáfora para a urbanização desenfreada através de músicas, a trilha sonora dos Irmãos Garbato, aqui, possui função. Elas ajudam a contar a história, pontuando sentimentos e ilustrando um terror que, metaforicamente, fala da segregação ainda existente em nossa sociedade: brancos, negros, bairros nobres, periferia e assim por diante.

Escrever sobre As Boas Maneiras sem citar o filme conjunto anterior de Marco Dutra e Juliana Rojas, “Trabalhar Cansa” (2011), é impossível. Na produção de seis anos atrás, que inaugura o subgênero que chamo de realexploitation, a dupla ensaiara seus primeiros passos em direção a um novo tratado sobre lobisomens. A fera temida está lá, escondida na penumbra, menos assustadora do que o desemprego reinante no lado de cá do Equador. Agora, o bicho finalmente saiu da toca, porém, sem deixar de lado a preocupação social que permeia a filmografia deles. Se a ordem que os trabalhos foram realizados fosse a inversa, eu não estranharia. O que leva a seguinte pergunta: seria a película de 2017 cronologicamente situada antes da obra de 2011? Não tive tempo de indaga-los, na coletiva do Festival do Rio, contudo, deixei a sessão com este questionamento e os versos de uma canção de ninar, tão assustadora quanto aparentemente inofensiva, a explodir e a martelar com força na minha cabeça: “Dorme no chão, dorme no feno, dorme cavalinho, aproveita que é pequeno”.

Desliguem os celulares e excelente diversão.

*Filme visto no 19º Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro

::: TRAILER

::: FOTOS

::: FICHA TÉCNICA 

Direção: Juliana Rojas, Marco Dutra
Elenco: Isabél Zuaa, Marjorie Estiano, Miguel Lobo
Gênero: Drama, Terror, Fantasia
País: Brasil, França
Estreia: 06/10/2017 (Festival do Rio)
Duração: 135 min.

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN