CRÍTICA | ‘Assunto de Família’ é sensível, humano e consciente porque faz o público pensar
Bruno Giacobbo
Para vocês, o que seria uma família? Se pesquisarmos na internet, a primeira definição que surge é esta: pessoas que possuem um grau de parentesco entre si e vivem na mesma casa formando um lar. Tradicionalmente, ela é composta por um pai e uma mãe, unidos por casamento, e por um ou mais filhos. Este núcleo, por vezes, inclui um avô, uma avó ou algum outro agregado. Uma tia. Acontece que este conceito foi solapado pelas mudanças dos costumes e, hoje, ele pode simplesmente se referir a pessoas que escolhemos amar. Ao longo da história cinematográfica, fomos apresentados a diversos tipos de famílias, como os Corleones, os Hoover e os Cash. A primeira é bastante cristã, mas não hesita em cometer os seus crimes. A segunda anda de Kombi por aí e a última vive reclusa em uma floresta. O que o cinema ainda não tinha nos apresentado era o artesão definitivo de filmes sobre a família.
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O japonês Hirokazu Kore-eda lançou, em 2013, o ótimo “Pais e Filhos”, um longa-metragem sobre casais que descobrem que suas crianças foram trocadas na maternidade. Aplaudida na época, a película recebeu o Grande Prêmio do Júri, em Cannes, depois de perder a premiação máxima, a Palma de Ouro. Esta foi, finalmente, alcançada com Assunto de Família (Manbiki Kazoku), uma obra ainda mais emocionante e desafiadora. Na conturbada Tóquio, Osamu (Lily Franky) vive em uma casa apertada com a esposa Nobuyo (Sakura Ando), o filho Shota (Kairi Jo), a cunhada Aki (Mayu Matsuoka) e a avó das duas mulheres, Hatsue (Kirin Kiki). O aperto do lar denota o nível de pobreza dos Shibatas, em um Japão em recessão: o pai não possui um emprego fixo, a mãe é mal remunerada e dependem da pensão da vó. Assim, Osamu e Shota recorrem a pequenos furtos para terem o que não podem comprar.
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E é voltando para casa, após uma destas andanças pelos supermercados e pelas lojas da cidade, que pai e filho encontram Yuri (Miyu Sasaki), uma menina de quatro ou cinco anos, chorando e aparentemente abandonada. Eles a levam para casa, dão o que comer e discutem o que fazer. Nobuyo quer devolvê-la logo. Osamu defende que a garota fique uma noite e depois, no dia seguinte, a família decida o que fazer. Chamar a polícia e entregá-la as autoridades é uma ideia que não passa pela cabeça de nenhum deles. Talvez, porque todos pratiquem alguma forma de cambalacho. A avó Hatsue trapaceia quando vai ao bingo. Isto fica bastante claro em uma cena. Desta forma, a menininha vai ficando e quando percebemos ela já está totalmente integrada àquela rotina familiar. Inclusive, para o assombro dos espectadores, participando dos golpes orquestrados por seu novo pai e por seu novo irmão.
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Uma frase, dita uma ou duas vezes ao longo do filme, serve de reflexão para esta obra de Kore-eda: “Para ser mãe basta colocar uma criança no mundo?” Tenho certeza absoluta que a maioria de vocês, leitores, concordará que não. Mãe é aquela cria, ama, educa e prepara os filhos para o mundo. Pai também, lógico. E é isto que Osamu e Nobuyo fazem com Yuri que, lá pelas tantas, por motivos que não valem ser revelados antes da hora, passa a se chamar Lin. Sim, eu sei que educação passa por bons exemplos e os Shibatas não têm estes parar dar. E o amor não conta? Conta, e conta muito. Roubando o insight de uma amiga (Solange, você me desculpa?), escrevo sem medo de ser feliz: Quanto amor em um família tão fora dos bons costumes! Ainda que não tenham feito a coisa certa ao ficarem a menina, eles a amam. A cena de uma viagem à praia, por exemplo, deixa este amor absolutamente claro.
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Aqueles que não conhecem Kore-eda podem, erroneamente, achar que o filme é uma apologia a todos os maus feitos dos Shibatas. Ledo engano, Assunto de Família é, na verdade, um belíssimo estudo sobre os diversos tipos de famílias na sociedade moderna. Com uma narrativa propositalmente lenta, o cineasta vai revelando as inúmeras camadas existentes naqueles personagens e quando algumas revelações, que já vinham sendo esboçadas, são confirmadas, é quase impossível recostar na poltrona novamente. Eu mesmo fiquei com a cabeça apoiada sobre as mãos, só fruindo tudo o que emanava da telona, encantado com as peripécias de Osamu e seus agregados. E por falar no pai, seu ator, Lily Franky, está maravilhoso e tem, provavelmente, a melhor interpretação do ano nesta obra-prima sensível, humana e consciente, porque faz o público pensar no mundo que o espera lá fora.
Desliguem os celulares e excepcional diversão.
*Filme visto no 20º Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro
::: TRAILER
https://www.youtube.com/watch?v=FZU3FHKF_fc