CRÍTICA | ‘Canastra Suja’ é a consagração de um cineasta em um filme excepcional

Bruno Giacobbo

Um dos teasers de divulgação de Canastra Suja, quarto longa-metragem do cineasta Caio Sóh, transcorre todo ao som de “Evidências”, de Chitãozinho e Xororó. Nós não somos japoneses, não amamos karaokês, mas quem já frequentou um na Liberdade ou em Botafogo, sabe que esta música é um ícone do amor e da sofrência. Na tela, enquanto a canção preenche os espaços da nossa imaginação afetiva, imagens do que seria uma família cantando, brigando e surtando, sucedem-se uma após a outra. Por estas cenas, que somam, ao todo, mais ou menos, dois minutos, dá para notar que o objetivo do diretor é desnudar as entranhas daquele núcleo familiar que, aparentemente, parece-se com tantos outros por aí. E é isto que ele faz por meio de uma trama dramática, pincelada com pitadas de suspense e que guarda para o seu último ato dois ótimos plot twists.

Leia mais CRÍTICAS DE FILMES

Na história, Batista (Marco Ricca) é casado com Maria (Adriana Esteves) e tem três filhos: Emília (Bianca Bin), Pedro (Pedro Nercessian) e Rita (Cacá Otoni). Alcoólatra, ele possui seríssimos problemas de relacionamento com os seus entes queridos. No entanto, nenhuma relação é mais complicada do que a com o único filho. O rapaz não trabalha ou estuda. E Batista o cobra por isso. Por outro lado, Pedro não gosta da forma como o progenitor trata a todos. Logo, sobram faíscas entre eles. O casamento dos pais também está em crise. Maria quase não sai. Sua função é fazer a comida, arrumar o lar e cuidar de Rita, portadora de algum grau de autismo que a faz ficar totalmente alheia aos problemas familiares. Definitivamente, esta dona de casa é infeliz. O personagem mais centrado parece ser Emília. Ela trabalha e faz força para que o pai frequente as reuniões dos Alcoólicos Anônimos (AA). Só que, amorosamente, está dividida entre o chefe, o dentista Lucas (João Vancini), e o namorado Tatu (David Júnior).

Curta o BLAH! no FACEBOOK

Sóh escolheu mostrar esta história através do ponto de vista de cada um dos personagens. São cinco atos, todos com o seu começo delimitado por uma carta do baralho que aparece na telona: o rei, a dama, o oito, o valete e o coringa. A tal canastra suja a qual o título faz referência. A escolha por este formato serve para dar relevância a Batista, a Maria, a Emília, a Pedro e a Rita. Em tese, o patriarca é o personagem principal, mas sua saga não é mais importante do que a de nenhum outro. Aos poucos, vamos conhecendo um a um e vendo como suas histórias se misturam. Eles são diferentes, cheios de idiossincrasias. São homens e mulheres com todas as suas individualidades latentes. Entretanto, é praticamente impossível não vê-los como um ente indivisível. O historiador francês Marc Bloch disse, uma vez, que “os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais”. O filme relativiza este dogma historiográfico e mostra como temos muito da nossa família.

Fique por dentro do MUNDO DO CINEMA

Nas locações de Vargem Grande, que reproduzem uma vizinhança suburbana qualquer, sem nome ou localização geográfica definida, a direção de arte ajudou a criar o clima perfeito para despertar no público uma sensação de empatia. Tudo é muito simples e humilde. Vai lembrar a origem de bastante gente e, dessa forma, a identificação com aqueles dramas será natural. E é neste contexto fértil que brilham talentos em profusão. Ex-marido e mulher na vida real, parece que Marco e Adriana levaram a química de outrora (e talvez os eventuais ressentimentos) para dentro do set. Galhardetes do cinema nacional, eles explodem em cena e contagiam os outros. Estrela atual da televisão, Bianca mistura sensualidade e ingenuidade; fortaleza e insegurança. Já Pedro, sempre que exigido, tabela com “seus pais” como um veterano. O trio protagoniza alguns dos melhores momentos. Contudo, a grande revelação é a menina Cacá, em uma atuação tão eloquente quanto desprovida de palavras.

ASSISTA ao BLAH! no YOUTUBE

Um dos pontos altos de Canastra Suja são os diálogos, o que serve para comprovar o amplo domínio do cineasta sobre o processo fílmico, uma vez que, além de dirigir, ele escreveu o roteiro. Extremamente feliz ao criar algumas das frases mais impactantes do cinema nacional na última década, suas escolhas quanto a enquadramentos e à utilização de planos-sequência foram igualmente afortunadas. Assim, destaca-se, logo de cara, uma cena em que uma câmera, subjetiva e tremida, deixa claro que estamos diante do olhar ébrio de Batista e o plano que entrega o segundo e definitivo plot twist do filme. Neste exato momento, surpreendidos pela última vez, dificilmente os espectadores não estarão envolvidos pelo mise-en-scène engendrado por Sóh. Desnudadas como aquela família, a emoção é quase certa e o único problema é o risco de as pessoas deixarem o cinema chorando e cantarolando os versos de “Evidências” como se estivessem em um karaokê.

Desliguem os celulares e excepcional diversão.

::: TRAILER

::: FOTOS

[soliloquy slug=”canastra-suja”]

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Canastra suja
Direção: Caio Sóh
Elenco: Adriana Esteves, Marco Ricca, Bianca Bin
Distribuição: ArtHouse
Data de estreia: qui, 21/06/18
País: Brasil
Gênero: drama
Ano de produção: 2018
Classificação: 16 anos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN