CRÍTICA | ‘Corra!’ é uma obra pulsante que versa sobre o racismo de uma forma como há muito tempo não se via

Bruno Giacobbo

Se tivesse estreado na época do governo de Barack Obama, o longa-metragem Corra! (Get Out) talvez fosse muito criticado por questionar a igualdade social alcançada pelos negros a partir da luta pelos direitos civis da década de 60. Lançado agora, em pleno início do mandato de Donald Trump, quando o discurso da intolerância volta a reverberar com força total, ele foi aclamado pela crítica americana e considerado o filme mais instigante do ano, até aqui. Dirigido e roteirizado por Jordan Peele, um debutante atrás das câmeras, esta é uma obra pulsante que versa sobre o racismo de uma forma como há muito tempo não se via e que mostra ser possível admirar e invejar uma coisa com a mesmíssima intensidade.

Na trama, Chris Washington (Daniel Kaluuya) e Rose Armitage (Allison Williams) são namorados e vivem um momento de pura felicidade. Esta pureza é visível logo nas primeiras cenas, onde ela aparece escolhendo, com um sorriso largo, muffins para o casal comer no café e ele se barbeando calmamente. Tudo ao som de uma música feita para dançarmos dentro do cinema. No entanto, aos poucos, esta alegria se dissipa e dá lugar a uma nesga de tensão. Eles estão prestes a viajar. Vão passar um final de semana na casa da família dela, em um lago distante. Será a apresentação dele ao clã e Chris está preocupado com a diferença racial, apesar de Rose assegurar que seus pais não são nada preconceituosos.

Dito e feito. A recepção é bastante agradável. Dean (Bradley Whitford) e Missy (Catherine Keener) são o que podemos chamar de pais descolados. Ele médico, ela psiquiatra, eleitores do já citado presidente Obama,  adeptos do discurso de que somos todos iguais e de que a supremacia ariana pregada por Hitler era uma grande bobagem. Eles exalam simpatia e se esforçam para que o namorado da filha se sinta à vontade. O último a chegar é o filho Jeremy (Caleb Landry Jones), futuro médico como o pai. Tudo no seu devido lugar e absolutamente perfeito. E como era de se imaginar, tanta perfeição levaria qualquer um a achar que existe algo de errado no reino da Dinamarca ou, melhor, na república dos Estados Unidos.

Humorista de raiz, Peele surpreende em sua estreia como cineasta. Por mais que algumas pessoas achem estranho, sua experiência com o humor foi essencial na hora de decidir os rumos que esta película tomaria. Classificada como terror, ela tem diversos momentos bem cômicos. Catalisados pelo também comediante Lil Rel Howery, que vive Rod Williams, o melhor amigo do protagonista, estes instantes são escrachados, de um riso sincero, daqueles que aliviam a tensão que aqui é alimentada por uma violência robusta. E quando estas duas, tensão e violência, explodem, somos atordoados de uma maneira que não ocorre, por exemplo, em “Cão Branco” (1982), de Samuel Fuller, referência óbvia e necessária quando o assunto é racismo. Desta forma, o maior mérito deste marinheiro de primeira viagem foi conseguir dosar todos estes elementos.

Outro mérito dele é o roteiro. Quando achamos que já vimos tudo (uma das coisas mais comentadas na fase de pré-lançamento era que os trailers entregavam a história toda), resta uma surpresa. O texto guarda uma bela virada para o seu desfecho. É possível, ao longo de todo o filme, deduzir uma série de aspectos em relação a trama, porém, o plot twist em si não é óbvio. Peele desenvolveu um ótimo script a partir de ideias simples, fornecendo um material interessante para que seu elenco homogêneo brilhasse. Assim, é complicado resistir à tentação de apontar os protagonistas como principais destaques, uma vez que estão realmente muito bem, mas eles não estão sozinhos. A Família Armitage inteira, especialmente Keener, dona de duas indicações ao Oscar, está excelente em cena.

Corra! custou uma bagatela. Apenas US$ 4 milhões, um trocado se pensarmos nos orçamentos do cinemão americano, mas muito mais do que custaram “Corrente do Mal” (2014) e o brasileiro “Trabalhar Cansa” (2011), só para citar dois exemplos de longas de terror com os quais a obra de Jordan Peele dialoga intimamente. Os três aterrorizam e prendem as pessoas nas poltronas mexendo ou fazendo alusão a coisas do dia a dia que de tão interiorizadas, infelizmente, muitas vezes, nem percebemos mais quão horripilantes elas são. Este tipo de cinematografia, se ainda não tiver nome, poderia muito bem se chamar “realexploitation”. Ela rende bons filmes, é barata e assusta de verdade.

Desliguem os celulares e excelente diversão.

TRAILER:

FOTOS:


FICHA TÉCNICA:
Título original: Get Out
Direção: Jordan Peele
Roteiro: Jordan Peele
Elenco: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford
Distribuição: Universal
Data de estreia: qui, 18/05/17
País: Estados Unidos
Gênero: terror
Ano de produção: 2017
Duração: 103 minutos
Classificação: 12 anos
Abertura nos EUA: US$ 33,3 milhões

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN