Crítica de Filme | As Mil e Uma Noites: Volume 3, O Encantado

Bruno Giacobbo

O último volume do épico social do cineasta português Miguel Gomes começa de uma forma diferente do longa-metragem que o precedeu. Ao invés de ir direto para um dos contos, ele mostra Xerazade (Crista Alfaiate), na intimidade de seus aposentos reais, escrevendo uma carta. Ela está visivelmente preocupada. Não sabe por quanto tempo ainda conseguirá entreter o rei Schariar com suas belas histórias. Depois, já distante dos muros do palácio, em um rápido encontro com seu pai, o Grão Vizir (Américo Silva), demonstra toda a sua angústia, mas é confortada com uma lição que lhe dará forças para seguir em frente.

– De onde surgem as histórias?
– Do desejo e do medo dos homens.
– E para que servem?
– Para nos ajudar a sobreviver.

Com este diálogo, em As Mil e Uma Noites: Volume 3, O Encantado, mais do que em qualquer outro momento da trilogia, o diretor toca precisamente no âmago da questão que lhe interessa: se no contexto fantasioso as histórias servem para que a protagonista-narradora resista às investidas do monarca tirano; no mundo real elas inspiram os homens que lutam contra as injustiças sociais. A partir daí, mesmo conservando a estrutura narrativa em formato de contos, a ficção é deixada de lado e a obra se metamorfoseia em um documentário, tal qual acontece no um. Bastante curiosa é a utilização de músicas brasileiras, sem nenhum propósito específico, como trilha sonora no início deste longa-metragem.

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Batizado de “O Inebriante Canto dos Tentilhões”, o foco deste primeiro conto é a rotina dos passarinheiros, homens que tem como hobbie capturar pássaros e colocá-los para participar de competições de canto. Atividade bastante difundida por todo o território de Portugal, com o passar dos anos, ela foi sofrendo com a ação indiscriminada do progresso. Algumas das áreas onde, antes, eles atuavam foram transformadas em zonas industriais. Esta transformação é narrada através de legendas que, na maior parte do tempo, contrastam com as imagens de paisagens rurais. Entre os passarinheiros, que em uma livre interpretação podem ser encarados como uma representação dos portugueses, um velho conhecido: o ator Chico Chapas, intérprete de ‘Simão Sem Tripas’ (vol. 2), aqui, sendo ele mesmo.

A história que encerra o épico chama-se “Floresta Quente” e é sobre Lin Nuan, uma imigrante chinesa em terras lusitanas. Só que ela não possui representação física. Sua saga é contada por meio de uma narração em off. De pano de fundo, cenas de grevistas exigindo melhores condições de trabalho. Não é dito. Contudo, um link que pode ser feito é o fato dos trabalhadores europeus terem que disputar vaga no mercado com uma mão de obra mais barata vinda do exterior. Além disto, em circunstâncias distintas, o cineasta nos mostra as duas faces dos lusos: gentis, pacíficos, mas capazes de se metamorfosear completamente e lutar por seus direitos quando tomados por um forte sentimento de injustiça.

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Em As Mil e Uma Noites: Volume 3, O Encantado a crítica em tons sarcásticos ao governo de austeridade econômica, mas esquecido do sentido de justiça social, é praticamente abandonada em detrimento da exaltação das virtudes do povo português. Esta mudança pode causar algum estranhamento em quem já tinha se acostumando à linguagem da trilogia involuntária de Gomes. No entanto, como ela é também um épico, faria pouco sentido criticar o opressor se não fosse para, em seguida, transmitir uma mensagem de esperança, mostrando que o humilhado tem brio suficiente para se reerguer e construir um futuro digno. “Às armas, às armas”, cantam os populares na manifestação do segundo conto.

Desliguem os celulares e ótima diversão.

Leia também:

As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto

As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado

FICHA TÉCNICA:
Direção: Miguel Gomes.
Roteiro: Telmo Churro, Miguel Gomes e Mariana Ricardo.
Produção: Sandro Aguilar, Luís Urbano e Thomas Ordonneau.
Elenco: Crista Alfaiate, Bernardo Alves, Chico Chapas, Carloto Cotta, Jing Jing Guo, Américo Silva, Louison Tresallet e Gonçalo Waddington.
Direção de Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom.
Montagem: Telmo Churro, Miguel Gomes e Pedro Filipe Marques.
Duração: 125 minutos.
País: Portugal.
Ano: 2015.

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN