Crítica de Filme: “Dentro da Casa”
Pedro Esteves
Dentro da Casa, de François Ozon (Potiche, Swimming Pool – À Beira da Piscina, 8 Mulheres), adaptação da peça teatral “O Menino da Última Fila” de Juan Mayorga, estreou na sexta-feira da semana retrasada e já foi alvo de inúmeras críticas, algumas elogiosas e outras não tão favoráveis. O filme tem como linha narrativa a história de um professor de Francês que, ao ler as redações de seus alunos, descobre em um deles uma grande capacidade literária. Porém, a história que este conta é “real”, é a narração de um dia em que ele esteve na casa de um colega de classe. A história se desenvolve tendo como base esta narrativa, que vai se construindo a cada ida do jovem autor a casa de seu colega.
Como podemos ver, a premissa, inicialmente, carrega profundas questões morais e éticas: é correto um aluno contar sobre a vida de outro em suas redações, expondo o cotidiano e a intimidade deste através de seu olhar apenas porque a história contada é uma boa história? O professor deveria apoiar seu aluno no desenvolvimento dessa narrativa, que podemos entender como imoral, só porque este tem um grande potencial como autor? Ou ele não deveria estimulá-lo, perdendo a oportunidade de ajudar na construção de alguém que pode vir a ser um grande autor se for ajudado? Não podemos, no entanto, resumir o filme só a essas questões, pois nele encontramos inúmeras outras, que envolvem classes sociais, metalinguagem, história pessoal do diretor (filho de professores), suspense, comédia, obsessão e jogos de poder, para enumerar algumas.
A construção da narrativa proporciona duas histórias que se confundem e se influenciam mutuamente: a contada pelo aluno, através de suas idas à casa de seu colega, expondo a intimidade deste ao mesmo tempo em que influencia seu cotidiano, e a vida pessoal e profissional do professor que se prende a história, juntamente com sua mulher, e não poupa esforços para ver a narrativa de seu aluno construída até o fim. O interessante é que cada texto produzido por este é finalizada com “continua”, isto é, o fim fica sempre suspenso, deixando uma angustia do que virá e permitindo que o professor influencie ela através de críticas, o que lembrando muito os folhetins de outrora, nos quais o autor apresentava a obra incompleta para uma audiência que opinava e, assim, alterava no rumo da história contada.
A influência do professor acaba por levantar questões sobre quanto da narrativa é real, quanto não é fruto da imaginação do aluno, qual a liberdade que o autor tem para modificar a história que ele está contando, como as ideias surgem e se transformam em uma história, quanto uma história não é uma interpretação intersubjetiva da realidade, etc. Ou seja, há um diálogo do filme consigo mesmo, com os elementos que compõe uma história, como o papel do herói, que o coloca em uma discussão metalinguística.
A vida dos outros é tomada como ponto para a construção de narrativas, levantando estes questionamentos. O professor e a esposa leem o trabalho do aluno que, através do seu voyeurismo, vai tomando conta dos dois personagens e influenciando sua relação. Ao mesmo tempo em que traz vida para o professor, torna-o obcecado pela história e nos transporta para as cenas lidas. No começo, a voz em off e a imagem do casal lendo aparecem em maior quantidade, mas vão paulatinamente diminuindo ao longo do filme para que haja mais tempo às imagens da narração. O mais interessante é que, se o voyeurismo do aluno torna-se o do professor através da leitura, também se torna o nosso, sendo isto magistralmente conduzido pela mudança citada; tornamo-nos voyeurs da relação do professor com sua esposa e com o aluno. Temos então um fetichismo da imagem, da história, que não é só do núcleo destes personagens, mas é nosso também.
Dentro da Casa é, assim, uma história de voyeurismo e obsessão, que nos prende na cadeira quanto mais o professor se prende ao aluno. Ele, de certa forma, confunde-se com seu pupilo ao acreditar que este possa vir a ser o que ele não conseguiu ser: um escritor. A relação dos dois subverte o status inicial de poder, gerando uma relação de manipulação com tons sádicos. O envolvimento dos dois também passa por certo fetichismo, pois o aluno torna-se um objeto de desejo, gerando uma ligação perturbadora entre os dois, uma ligação que também se torna a nossa.
O aluno é um personagem cuja história pessoal ficamos sem conhecer a fundo, quer dizer, sabemos mais sobre seu colega do que sobre ele. Talvez a única coisa forte que sabemos sobre ele é que não pertence à mesma classe social da família que observa, uma família de classe média. Ele expõe o seu desejo de participar desta, de pertencer a uma classe superior, de conhecer como essa família é. Há, então, uma exposição do cotidiano familiar de uma classe média, denunciando as suas relações conturbadas, falsas e também as honestas. Se pensarmos no professor como um símbolo do que é essa classe média, temos um retrato conturbador desta: obcecada e perdida, precisando inventar histórias que lhe deem vida.
Porém, se os personagens vivem esse cotidiano estranho, um grande mérito do diretor, e façamos jus, um mérito recorrente dele, é o não-julgamento de seus personagens; eles não são bons nem ruins, são pessoas vivendo uma vida, com os problemas cotidianos da classe média. Porém, é justamente este indivíduo, o aluno, que, não pertencendo a esta classe, exerce um poder de interferência na vida de todos, modificando os cotidianos, sejam esses reais ou não. No final, inclusive, podemos questionar, através da narração do aluno que reaparece neste momento, se ele não inventou o que acabamos de ver. É no final, também, que talvez esteja a principal falha do filme, ele termina de forma previsível e até moralista. Claro, não posso deixar de citar a homenagem a Hitchcock feita na cena final, que coloca não o fim da história, mas um “continua…”.
BEM NA FITA: A capacidade do diretor em nos prender na cadeira, através de uma narrativa instigante e construída com maestria.
QUEIMOU O FILME: O final previsível e moralista.
FICHA TÉCNICA:
Nome: Dentro da Casa (Dans La Maison)
Diretor: François Ozon
Elenco: Kristin Scott Thomas, Fabrice Luchini, Emmanuelle Seigner, Denis Ménochet, Ernst Umhauer, Bastien Ughetto, Jean-François Balmer, Yolande Moreau, Catherine Davenier, Vincent Schmitt, Jacques Bosc, Stéphanie Campion, Ronny Pong, Diana Stewart, Jana Bittnerova, Nadir Azni, Bénérice Barbin, Marie Brunet, Cyril Chaussivert, Matthieu Cisse, Yann Conflant, Manon Delaître, Noé Fournier, Vincent Hocini, Guillaume Jacques, Marie Jupille, Cendro Kancel, Belkacem Lalaoui, Alain Lhostis, Antoine Louis, Kevin Méanard, Mehdi Meskar, Mohamed Dahmane El Mehdi, Mélissa Placide, Olivier Royer, Hana Tanem, Christian Tongkhiane, Gaëtan Vajou, Fabrice Colson
Produção: Eric Altmeyer, Nicolas Altmeyer, Claudie Ossard
Roteiro: François Ozon, Juan Mayorga
Fotografia: Jérôme Alméras
Trilha Sonora: Philippe Rombi
Duração: 106 min.
Ano: 2012
País: França
Gênero: Suspense
Cor: Colorido
Distribuidora: Califórnia Filmes
Estúdio: Mandarin Films / Mars Distribution / France 2 Cinéma / FOZ / Canal+ / Ciné+ / France Télévision / La Banque Postale Images 5 / Palatine Étoile 9 / Région Ile-de-France / Cofimage 23
Classificação: 14 anos