Crítica de filme: A memória que me contam

Alan Daniel Braga

Em 1989, Lúcia Murat lançava seu segundo filme. “Que Bom Te Ver Viva” é um drama documental que retrata a tortura no Governo Militar através do depoimento de oito mulheres, que mostram como conseguiram seguir vivendo. Intercalado com as histórias reais, há uma dramatização. Irene Ravache, que também narra o filme, encarna uma “ex-guerrilheira” com suas revoltas e traumas. A personagem representa o que muitas mulheres passaram, mas é principalmente a voz da própria diretora, que também passou por todo o horror.

Intervalo reflexivo:

No debate realizado no último sábado (veja a matéria aqui), Lúcia Murat citou o depoimento que deu à Comissão da Verdade do Rio e mostrou satisfação pelo depoimento ter repercutido nas redes sociais. Muitos jovens de hoje , segundo ela, só estão tomando consciência do que foi a tortura em função destes depoimentos. Ao ouvir isso, não pude deixar de pensar que foi exatamente o filme de 1989 que, alguns anos depois, trouxe a mim uma luz sobre como eram essas práticas em tempos sombrios.

Volta para:

Agora, mais de 20 anos depois, a diretora lança “A Memória Que Me Contam”, outro drama, desta vez ficcional, que também retrata a geração que lutou contra a Ditadura. Mas não para aí. O filme traz também a geração que veio depois, os filhos. O objetivo é mostrar como as duas gerações lidam com esse passado e com o sentido de revolução no presente.

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O resultado é um filme mais lírico e brando. Com a mesma Irene Ravache como protagonista, Lúcia mostra como o tempo cura, mas deixa cicatrizes. A personagem de Irene em “Que Bom Te Ver Viva” era uma mulher ainda aprisionada e torturada. Uma mulher agressiva que vivera muito recentemente tudo aquilo e, fazendo jus à recém conquistada “liberdade de expressão”, queria gritar. A Irene de Irene em “A Memória Que Me Contam” não superou completamente o passado, mas convive com ele ao lado de um grupo de amigos. Embora ainda sobre espaço para a argumentação e as convicções, ela não está aprisionada. Teve um filho. Fez filmes. Mas agora, com a amiga que sempre foi sua guia e sustentação numa UTI, ela volta a reviver o passado e o medo.

A Memória Que Me Contam” é um filme de reflexão. Ele não pretende dizer o que está certo e mostra os dois lados (“Nós reagimos, matamos… Também erramos.”). Mostra a realidade de um grupo de pessoas que tiveram ou ainda têm ideologias claras e o conflito que existe no convívio com o mundo de hoje. No entanto, os discursos, às vezes, soam pouco naturais. Desenvolvidos demais. De efeito. Além disso, uma ou outra reação parece querer redimir certos personagens… (Exemplo: a reação do Ministro da Justiça ao depoimento dado na TV. Como parte do sistema, ele deveria estar mais acostumado. Não precisaria ser necessariamente um corrompido, mas certamente alguém mais calejado.).

O passado e o presente são sempre vistos no filme através de alguma transparência, turvos, embaçados. E o filme segue uma não linearidade para mostrar que a memória, muitas vezes, é mais presente que a realidade. A Ana de Simone Spoladore é quem faz a vez da personagem aprisionada pelo passado. A que teve sequelas. Aquela cuja imagem do passado é a que se mantém para cada um daqueles que conviveram com ela. Os diálogos e encontros da personagem, de início, confundem, mas quando somos diretamente apresentados a ela e à situação, a dinâmica ganha força e dá até certo charme ao roteiro. (A personagem é inspirada na economista e socióloga Vera Sílvia Magalhães, a quem Lúcia dedica o filme).

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Vale destacar, em meio à crítica que está mais para exercício de interpretação, o trabalho do trio mais jovem, Miguel Thiré, Naruna Kaplan de Macedo e Patrick Sampaio. Naruna, que não é atriz, foi escolhida por ter o perfil e falar fluente o francês. Em certos momentos, parece mesmo um elemento estranho naquele universo, o que cabe perfeitamente na personagem. Miguel e Patrick encarnam um casal realista, sem trejeitos exagerados.

Ao fim, “A Memória Que Me Contam” é também um filme de reflexo. Reflexo de uma geração que conquistou a liberdade, mas guardou a marca do açoite. E que embora livre, convive com a estranha culpa de quem ficou. E reflexo da evolução pessoal de Lúcia Murat.

A quem espera por um filme clássico, esqueça. Este é um filme de sensações, com o final previsível desde o início. Porque o importante, politicamente corretas ou não, são as questões que serão abordadas até lá.

 
BEM NA FITA: O lirismo imagético com que o tema é abordado, a fotografia, algumas atuações.
QUEIMOU O FILME: Discursos e reações menos ‘naturais’.
FICHA TÉCNICA:
Gênero: Drama
Direção: Lúcia Murat
Roteiro: Lúcia Murat, Tatiana Salem Levy
Elenco: Irene Ravache, Simone Spoladore, Miguel Thiré, Naruna Kaplan de Macedo, Franco Nero, Clarisse Abujamra, Hamilton Vaz Pereira, Otávio Augusto, José Carlos Machado, Patrick Sampaio e outros.
Produção: Daniel Lion, Denis Feijão, Martha Ferraris
Fotografia: Guillermo Nieto
Trilha Sonora: Diego Fontecilla
Mais informações no site do filme.

Alan Daniel Braga

Publicitário e roteirista de formação, foi de tudo um pouco: redator, produtor, vendedor, clipador, operador de som e imagem, divulgador, editor de vídeos caseiros, figurante e concursado. Crítico, irônico e um tanto piegas, é conhecido vulgarmente como Rabugento e usa essa identidade para manter um blog pouco frequentado (Teorias Rabugentas). Também mantém uma página no Facebook (Miscelânea Rabugenta), com a qual supre a necessidade de conhecer músicas, artistas e pessoas novas. Está longe de ser Truffaut, mas gosta de dar voz aos incompreendidos. (Acesse http://teoriasrabugentas.blogspot.com.br/ e curta https://www.facebook.com/MiscelaneaRabugenta)
NAN