Crítica de Filme | O Ano Mais Violento
Bruno Giacobbo
Nova Iorque, 1981. A maior metrópole norte-americana vive uma grave crise institucional. Uma onda de violência assola suas ruas. Assaltos à mão armada, sequestros, estupros e assassinatos, quase tudo é praticado com a certeza da impunidade. Se nos becos, escondidos nas sombras, imperam os larápios, os punguistas e os vigaristas; nas altas rodas, instalados em seus escritórios, quem dita a lei do mais forte nesta violenta selva urbana são aqueles que deveriam zelar pela segurança dos cidadãos: políticos, servidores públicos, advogados e empresários. Autênticos ‘mafiosos’ travestidos de homens de bem. Dentro deste contexto, não é a toa que este ano seja considerado o mais violento de toda a história da “Big Apple”. Estranho mesmo é que em uma cidade acostumada a ser protagonista de diversas obras cinematográficas, onde sua população conserva com bastante nitidez as lembranças destes dias tenebrosos, como mostra o curta-metragem disponível na internet, “A Most Violent Year – NYC, 1981”, tenha se levado tanto tempo para produzir um longa-metragem inspirado no período.
Escrito e dirigido por JC Chandor, o filme que resgata a memória desta época chama-se O Ano Mais Violento, um excepcional thriller policial que traz a saga de Abel Morales (Oscar Isaac), um imigrante colombiano disposto a quase tudo, menos abrir mãos de seus valores, para defender sua empresa e proteger sua família. Casado com Anna (Jessica Chastian), filha de um gângster do Brooklin, juntos, eles possuem um negócio de armazenamento, venda e transporte de combustível. Ambicioso, o casal vê na aquisição de um terreno, localizado próximo a uma das saídas marítimas da cidade, a chance de expandir seu império. Perto do mar, dispensarão atravessadores e poderão controlar seu destino, como frisa o protagonista. Dado o sinal de compra, os Morales tem um mês para efetuar o restante do pagamento, sob pena de perderem tudo o que conquistaram até hoje. Missão relativamente simples, esta se mostrará muito mais complicada quando eles começarem a sofrer ataques orquestrados por uma concorrência desleal e o assédio do, não menos ambicioso, procurador, Lawrence (David Oyelowo).
Uma das coisas mais curiosas desta obra é que a violência expressa no título e que inspirou sua realização, pouco aparece na forma de balas, brigas ou qualquer coisa do gênero. Logo no início, escutamos uma transmissão de rádio. O locutor informa a ocorrência de um crime em algum lugar de Nova Iorque. Mais tarde, em momentos específicos, somos informados da existência de outros delitos. Sempre por meio de um noticiário. Se fosse em outro filme, poderia ser mero detalhe. Aqui, não. O objetivo é mergulhar o espectador no cotidiano violento da cidade e fazê-lo sentir a mesma opressão que os nova-iorquinos estavam acostumados. Este clima opressivo é reforçado por vários outros fatores. Um deles é o competente trabalho de fotografia que deu a película a aparência de um daqueles velhos retratos, desprovidos de vida, que encontramos nos álbuns de família, guardados no sótão. Há ainda uma trilha sonora minimalista, que serve basicamente para pontuar os instantes de tensão; e uma edição e mixagem de som que atingem seus ápices em uma formidável perseguição automobilística dentro de um túnel, uma das raras passagens onde a violência explode de maneira visível. Tudo junto ajuda a conferir uma aura pesadíssima.
Mal comparando, O Ano Mais Violento é uma versão menos sofisticada de “O Poderoso Chefão” (1972), a obra-prima de Coppola, balizadora de todos os filmes de máfia que vieram depois. Sei que tal comparação parece absurda. No entanto, um vício inerente à profissão de crítico de cinema é ver um filme pensando em referências ou comparações. Logo, esta conclusão foi inevitável. Para começo de conversa, Michael Corleone e Abel Morales são personagens que possuem o mesmo arquétipo. Imigrantes, ou descendentes de imigrantes, que almejam o sonho americano. Sobre ambos paira uma influência nefasta da qual querem distância. No caso do primeiro, o pai, Don Vito Corleone. No segundo, o sogro, citado mais de uma vez como alguém que pode lhe abrir portas que o trabalho honesto não abriria tão facilmente. Tentados, eles acreditam ter ao alcance das mãos o controle de seus respectivos destinos. Inclusive, Abel não cansa de repetir que sempre escolheu o caminho certo e que apenas isto realmente importa. Se ele irá resistir ou cair em tentação assim como fez Michael, só vendo para descobrir.
Com o mesmo jeito pausado ao falar e a eloquência silenciosa na hora de olhar, como quem exige o respeito de seu interlocutor, em mais duas semelhanças com o célebre papel desempenhado por Al Pacino há 40 anos, Oscar Isaac conseguiu compor um tipo igualmente complexo. Um homem comum, com aspirações, sonhos e preocupações iguais a de outros chefes de famílias. Um dia, oprimido pelas circunstâncias do mundo que lhe rodeia, cercado por gângsteres e interesses políticos, precisa decidir que caminho seguir e desta decisão dependem todos aqueles que confiam nele. Ele é a estrela deste filme, mas poderia ser qualquer pessoa que viveu em Nova Iorque, no distante ano de 1981. Ao embarcar neste projeto, sem nenhum demérito a Chastian, que também está ótima, o ator guatemalteco deu um passo à frente na sua carreira. Já o diretor JC Chandor fez uma obra de ficção que reproduz com perfeição o clima de uma época real e assim produziu algo extremamente raro: uma nova obra-prima. Arrisco-me a dizer, “O Poderoso Chefão” desta geração. Que venham as pedras!
Desliguem os celulares e excepcional diversão.
BEM NA FITA: Tudo. O filme é uma obra-prima e uma ode ao maior longa-metragem de todos os tempos.
QUEIMOU O FILME: Absolutamente nada.
FICHA TÉCNICA:
Direção, roteiro e produção: JC Chandor.
Elenco: Oscar Isaac, Jessica Chastain, David Oyelowo, Alessandro Nivola, Albert Brooks, Catalina Sandino Moreno, Ashley Williams, Elyes Gabel, Jerry Adler, Christopher Abbott, Elizabeth Marvel, Peter Gerety, David Margulies, Annie Funke, Kathleen Doyle e Patrick Breen.
Diretor de Fotografia: Bradford Young.
Trilha Sonora: Alex Ebert.
Montagem: Ron Patane.
Duração: 125 min.
Ano: 2014.
País: Estados Unidos.